SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Vista com desconfiança pelos investidores preocupados com práticas ESG, a indústria aeronáutica tem dado passos para entrar nessa tendência de mercado com a carta na qual talvez seja mais forte: a tecnologia.
No caso, para reduzir emissões de carbono, trabalhando a perna E, de “environment” (ambiente, em inglês), da sigla que virou mantra das corporações mundo afora.
A Boeing, gigante norte-americana que divide o mercado com a Airbus europeia, tendo competidores menores como a brasileira Embraer no mesmo ambiente, busca tomar a dianteira.
Em setembro do ano passado, criou o cargo de CSO, ou executivo-chefe de sustentabilidade. Na semana passada, o primeiro relatório de trabalho do grupo sob a responsabilidade do vice-presidente Chris Raymond foi publicado, com metas ambiciosas.
“Depois da pandemia, o mundo descobriu que quer se conectar mais. Há nisso um bem na indústria aeroespacial”, afirmou ele durante uma conversa virtual com a reportagem, na quinta-feira da semana passada (29).
Entre os planos, o comprometimento com a produção de aeronaves que possam voar com 100% de SAF (combustíveis de aviação sustentáveis), categoria de carburantes que inclui biocombustíveis e óleos recicláveis de origens diversas.
É ambicioso? “O fato de que a indústria sempre focou na eficiência de consumo significa que ela sempre se preocupou com as emissões de carbono”, diz o executivo.
Este é o principal ativo das empresas aeronáuticas no mundo do ESG, já que o S (social) e o G (governança) passam relativamente por lugares comuns: no caso da Boeing, criação de comitê de maior promoção de igualdade racial, doações na casa de US$ 230 milhões anuais e afins.
A Airbus tem um departamento dedicado ao ESG e a Embraer, terceira maior fabricante do mundo atrás das duas gigantes, lançará seu plano para o setor em agosto.
No mundo, 3% do total de emissões de gases de efeito-estufa vêm da aviação, número que sobe a 12% quando se avalia modais de transporte.
“Nós certamente acreditamos que incrementar o uso dos SAF é a coisa mais importante a fazer. Isso não significa que devamos parar de pesquisar o uso de hidrogênio e eletricidade”, diz, lembrando que a Boeing tem mais de 1.500 voos em seu protótipo de carro voador elétrico, o Cora.
Raymond acha que o carro voador irá estar no cotidiano, mas é algo ainda incerto e dependente de diversos fatores: tecnologia, certificação de segurança, a questão do controle de tráfego aéreo.
“Eu me pergunto: há um ‘business case’ aqui? Como ter centenas de táxis voadores em São Paulo, como fazer isso de forma segura? Onde vamos pegar o táxi? No topo de um arranha-céu, como fazemos com helicópteros em São Paulo, ou em estacionamentos?”, disse.
Raymond cita São Paulo com propriedade, pois participou do malfadado processo de integração entre a Boeing e a área de aviação comercial da Embraer, abortado pelos americanos em 2020. Ele não fala sobre o tema, objeto de contestação numa corte de arbitragem em Nova York.
Carros voadores têm sido uma peça de propaganda da concorrência, particularmente a Embraer, que firmou parcerias recentes para promover o seu protótipo.
Raymond acredita, contudo, que os SAF são respostas mais imediatas à mudança climática alimentada por queima de material fóssil.
Aqui entra o Brasil em sua equação. Hoje meio abandonado, o programa nacional de biocombustíveis lançado em 2004, deitou raízes na forma de empresas com capacitação no tema.
“Temos dez anos de experiência no Brasil, e parceiros por aqui. É normal olharmos para os líderes no setor quando o aperto no fornecimento é uma questão central”, disse o vice-presidente de Política Global e diretor da Boeing no país, Landon Loomis.
No passado, a Boeing desenvolveu um de seus EcoDemonstrators, aviões preparados para uso de SAF, com a Embraer. A parceira atual é a Etihad, linha aérea de Abu Dhabi. “Nós temos que dar todo crédito para as empresas aéreas, elas buscam sempre avançar em aviões mais eficientes”, diz Raymond.
Como ele afirmou, cada região do mundo tem sua particularidade: no Brasil, soluções de biomassa incluem principalmente bagaço de cana e resto de madeira, em outros países os resíduos de milho podem ser mais interessante.
“O importante é poder certificar o combustível”, afirmou ele. Da parte da Boeing e de fabricantes de motores e peças, ainda há todo o processo de adaptação ao uso desses combustíveis, que têm características diferentes do querosene de aviação –com a vantagem de “devolver” a poluição que causam por serem “verdes”.
A Boeing dá muito peso à participação e interesse de governo, o que levou à questão acerca de buscar parcerias no país de Jair Bolsonaro, presidente tachado de vilão ambiental em todo o mundo.
Loomis, diplomaticamente, diz que o contexto brasileiro é positivo desde que o mandatário participou com propostas de metas de adequação ambiental na cúpula organizada em abril pelo americano Joe Biden.
A Boeing não revela quanto gasta anualmente em pesquisas no setor de combustível, ainda mais sob a pressão da crise da pandemia e dos problemas com seu best-seller, o 737 MAX, que passou dois anos no chão devido a acidentes causados por defeitos de projeto, e com o desenvolvimento da nova versão do 777.
Em 2020, o faturamento na casa de US$ 100 bilhões da Boeing foi cortado em 40%, e o resultado registrou prejuízo líquido de US$ 12 bilhões.
A adesão mundial às práticas ESG tem motivação prática também.
Segundo levantamento da consultoria Morningstar, apenas 2% das aplicações de fundos que se orientam pela métrica do ESG estão na indústria aeroespacial, que geralmente é vista pelo seu ramo gêmeo, o da defesa.
Aviões de combate e armas não combinam com o discurso politicamente correto de consultores especializados no setor, algo que Raymond não nega. “Eu vejo o setor aeroespacial com um todo. Mas vai ser um pouco mais difícil na área de defesa”, diz.
Pela movimentação da Boeing e de outras empresas da área, contudo, fica claro que o grande peso relativo delas na cadeia econômica acabará se impondo, com acomodações de lado a lado.