Jogadores de futebol estão conversando nos bastidores contra a falta de pagamento de salários dos clubes brasileiros, uma situação cada vez mais comum nas últimas temporadas. A ideia é, além de levar os casos para a Justiça do trabalho, dedurar a falta na Fifa, que já anda de olho nas associações que não honram com suas obrigações no que diz respeito às transações internacionais. Não está descartada que a entidade faça um apelo para as confederações nacionais para que elas criem mecanismos capazes de impedir o não cumprimento dos acordos financeiros.
Pela Lei Pelé, um atleta pode pedir sua rescisão sem ônus quando o clube não paga três meses seguidos de salário. O caso mais recente no Brasil diz respeito à decisão do meia Thiago Neves de romper com o Sport por falta de pagamento mensal. Ele não é o único nessa condição no clube do Recife, que vive às turras com a ameaça de ser rebaixado no Campeonato Brasileiro. Thiago foi acusado por torcedores de tumultuar o ambiente. “Faço de tudo para deixar o ambiente bom, até comprar chuveiros, sem falar das frutas”, rebateu o atleta, que fez 46 jogos pelo clube pernambucano.
Thiago Neves resolveu abandonar o clube e renegociar seu contrato, de modo a poder atuar em outro lugar sem ter qualquer ônus. O Sport não fez objeção à sua saída e agora começa a negociar o que deve ao jogador. Nos últimos três anos, a Justiça do trabalho se depara com uma avalanche de pedidos de ações de atletas de futebol contra seus respectivos times. Um dos casos mais emblemáticos foi o do zagueiro Dedé, que levou o falido Cruzeiro ao banco dos réus com ação de R$ 330 milhões, ainda não paga.
Dezenas de outros jogadores, inclusive de categorias de base, alguns que pouco atuaram pelos seus clubes, ingressaram na Justiça para obter ganhos que julgam ter direito pelo rompimento de contrato ou não pagamento de benefícios das leis trabalhistas. Essas ações, corrigidas, se transformam em dívidas pesadas para os dirigentes em caso de derrota nos tribunais.
Clubes como a Portuguesa, de São Paulo, entraram em programas específicos para reorganizar suas pendências trabalhistas, pagar mensalmente o que deve e assim ganhar crédito no mercado para continuar com suas atividades esportivas. O Corinthians passa pelo mesmo processo. Sofre ações trabalhistas de atletas que pedem cifras milionárias. Em 2020, o clube tinha quase 200 processos na área do trabalho, muitos deles de jogadores que vestiram a camisa do time, ou pelo menos assinaram contrato para vestir.
Empresários de jogadores se valem do mesmo expediente. Eles são arrolados em negociações e reclamam, muitas vezes, que não receberam suas comissões, previamente combinadas. Todas essas contam chegam para os clubes. Quando a Justiça do Trabalho dá ganho de causa para o trabalhador, o clube tem de pagar. Geralmente fazem isso em parcelas.
As reclamações mais recorrentes dão conta de salários atrasados, direitos de imagens não pagos, falta de recolhimento de impostos trabalhistas, acordos firmados e não cumpridos, com atletas e agentes, e até pedidos de horas extras e adicional noturno – boa parte dos jogos acabam após as 22h. Entidades como federações regionais dos 27 Estados brasileiros, CBF e clubes serão arroladas nessas discussões, que também devem ter a participação de associações representativas dos atletas. A intenção é colocar tudo em dia. Os clubes apostam na volta do torcedor para ganhar mais dinheiro e acabar com esse problema.
LEI PELÉ – O que diz a lei 9.615 de 31 de março de 1998 em seu artigo 31: “A entidade de prática desportiva empregadora que estiver com pagamento de salário ou de contrato de direito de imagem de atleta profissional em atraso, no todo ou em parte, por período igual ou superior a três meses, terá o contrato especial de trabalho desportivo daquele atleta rescindido, ficando o atleta livre para transferir-se para qualquer outra entidade de prática desportiva de mesma modalidade, nacional ou internacional, e exigir a cláusula compensatória desportiva e os haveres devidos. São entendidos como salário, para efeitos do previsto no caput, o abono de férias, o décimo terceiro salário, as gratificações, os prêmios e demais verbas inclusas no contrato de trabalho.”
Nos últimos dois anos, as dívidas dos clubes cresceram no Brasil, de modo a extrapolar as condições anuais de receitas para bancá-las. Ou seja, tudo o que times como o Corinthians, por exemplo, arrecadam em uma temporada não é mais suficiente para pagar suas dívidas, inclusive as trabalhistas. No caso do clube alvinegro, sua dívida é de R$ 1 bilhão, sem contar as pendências financeiras da sua arena em Itaquera, que continua sem público como todos os estádios de São Paulo – foi autorizado a volta do torcedor a partir de 4 de outubro. Em 2019, o Corinthians teve receita de R$ 350 milhões com patrocinador, TV, bilheteria e venda de jogadores.
Esse movimento dos jogadores tem provocado duas consequências. A primeira delas é similar ao que fez Thiago Neves, optar pelo rompimento de contrato em vigência e tentar trabalhar em outra equipe. Daniel Alves fez o mesmo com o São Paulo, que lhe deve R$ 12 milhões. Ele tinha contrato de mais dois anos. É claro que nem todos os jogadores têm essa condição, de largar tudo e parar de trabalhar. A maioria se vê ‘presa’ ao clube como única fonte de renda e possibilidade de vencer na carreira.
A segunda tendência diz respeito à melhora, ou tentativa de melhora, de os clubes enxugar seus elencos e parar o sangramento, refazendo as contas para poder pagar em dia. A nova diretoria do São Paulo garante que está fazendo isso. O próprio Corinthians admite ter se livrado de muitos jogadores que não eram aproveitados no time para parar de gastar. Há outros clubes na mesma condição. O Palmeiras nunca comprou tão pouco quanto nesta temporada e se livrou de alguns atletas de salário alto, como Lucas Lima.
Presidente do Sindicato dos Atletas de São Paulo, Rinaldo Martorelli produziu uma série de vídeos sobre o tema. Num deles, alega que o “futebol brasileiro vive num cenário de instabilidade e descumprimento”, e que tem “jogador que prefere atuar na Tailândia do que ficar no Brasil, porque lá paga-se em dia”. Ele informa que há clubes que ainda reclamam do fim do passe, que ‘prendia’ o jogador aos times como um patrimônio. “Eu fiquei mais de um ano sem jogar no Palmeiras porque o clube não deixava nem me liberava mesmo com propostas”.
Com a Lei do Mandante, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro semana passada, os clubes terão a partir de 2024, quando terminam os contratos vigentes, de renegociar seus direitos de transmissão com emissoras de TV e canais de streamings e tentar, assim, melhorar suas receitas. A volta do público e os programas de sócio-torcedor tendem a melhor os ganhos principalmente dos grandes times também. Em alguns lugares do Brasil, como Rio e Minas, os portões já estão abertos parcialmente e alguns clubes começam a ter bilheteria. Flamengo e Atlético-MG, por exemplo, já vivem essa realidade.
“Tenho R$ 987 milhões (de dívida). Não tivemos aumento da dívida nesse período, vivemos a pandemia, sem torcida no estádio. Há clubes que são elogiados diariamente por contratações que têm receita 1/3 menor do que a do Corinthians. Os outros não chegam em R$ 900 milhões (de dívidas), mas têm R$ 800 milhões, R$ 700 milhões, R$ 600 milhões. E eles não têm a nossa receita. Foram quase R$ 36 milhões de economia no futebol entre o que estava orçado e o que está realizado. A dívida não vai diminuir de um dia para o outro”, disse o presidente corintiano, Duílio Monteiro Alves, meses atrás, em entrevista para justificar os números ruins da gestão do clube.
O presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, relevou no programa Estadão Esporte Clube que a folha de pagamento do clube é de R$ 3 milhões. “É uma das menores da Série A. Então, temos de ser muito eficientes”, disse. O clube não gasta o que não tem e se vira com boas ideias para fazer dinheiro e se aproximar do torcedor.
Organizar a casa parece ser o único caminho para ter sucesso nas finanças e dentro de campo. Clubes bem estruturados dão esse exemplo, com uma forcinha de patrocinadores e grandes investimentos. Palmeiras, Atlético-MG e Bragantino estão nesse grupo. O Flamengo faz receitas gigantes e vem de anos de conquistas, desde Jorge Jesus. Teve um trabalho de reestruturação forte, amargou situações desastrosas, como o caso dos dez meninos mortos no Ninho do Urubu, refez contratos e conseguiu entrar num caminho virtuoso, o mesmo que tenta seguir o rival de Minas.
O Palmeiras se ajeitou com o dinheiro de patrocinador. Há ainda alguns times do Nordeste que se esforçam para sobreviver sem o aposte de padrinhos ricos. É o caso do Fortaleza, com bases sólidas e trilhos bem fincados no chão. Não há, portanto, um único camiho para se arrumar, ter bons elencos, pagar em dia e ser relevante nos torneios. Mas é preciso começar. Os jogadores não querem mais ser a parte fraca dessa relação.