Por muito tempo, a Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf) foi vista quase como uma briga entre apenas México e Estados Unidos ditando a supremacia local. Mas o cenário parece começar a mudar, especialmente, com o fortalecimento do Canadá no âmbito regional. O país vai ser uma das sedes da Copa do Mundo de 2026, ao lado de Estados Unidos e México, e quer se classificar para o Mundial do Catar, esse ano, para servir de preparação.
As expectativas do Canadá mudaram há poucos anos. Até janeiro de 2018, a seleção masculina de futebol havia sido comandada por sete técnicos, incluindo interinos, em um espaço de nove anos, até chegar ao nome de John Herdman. De lá para cá, muita coisa mudou. Hoje, a equipe nacional é líder do octogonal final das Eliminatórias da Concacaf, com quatro vitórias e quatro empates, além do melhor ataque e da melhor defesa. Essa é a primeira vez que o Canadá chega à fase final da disputa desde 1998.
“Não temos medo de ninguém”, disse o capitão e goleiro Milan Borjan a repórteres, em junho do ano passado. “Os outros que deveriam ter medo do Canadá”, desafiou.
O país pulou da 95.ª posição no ranking da Fifa para a 40.ª, desde que Herdman virou treinador. Só em 2021, subiu 38 colocações, maior feito dentre todas as seleções. Na Copa Ouro realizada no ano passado, chegou às semifinais, sendo eliminada pelo México em um jogo tenso, ao sofrer um gol aos 53 minutos do segundo tempo.
O principal responsável apontado pela evolução na seleção canadense é justamente o treinador. O inglês John Herdman trocou a seleção feminina do país pela masculina em 2018, após dois bronzes olímpicos e a conquista dos Jogos Pan-Americanos de 2011, em que derrotou o Brasil na final.
Filho de metalúrgicos em Corsett, perto de Newcastle, Herdman jogou futebol semiprofissional, mas logo percebeu que não teria futuro. Já aos 16 anos, começou a fazer cursos de técnico. Aos 23, ele comandava a Brazilian Soccer School, uma escolinha brasileira de futebol localizada na região. A iniciativa tem como foco a “alegria do jogo”, segundo o site oficial. “Não contamos os gols marcados. A nossa missão é uma formação técnica individual e abrangente dos jogadores”, informa a organização.
Herdman treinava muitos filhos de jogadores do Sunderland, clube próximo à cidade que ofereceu uma vaga de trabalho na base. Durante o dia, era aluno do departamento de ciências do esporte na Northumbria University e, à noite, trabalhava com os jovens do time.
Hoje, no comando da seleção masculina do Canadá, ele é elogiado por ter dado oportunidades a jovens promessas, atraído jogadores talentosos de dupla nacionalidade e colocado os canadenses com boas chances de voltar a uma Copa do Mundo, após 36 anos. A seleção é comandada por Alphonso Davies, de apenas 21 anos. Mas outros garotos são considerados talentos em ascensão, como os atacantes Jonathan David, do Lille, da França, e Tajon Buchanan, do Brugge, da Bélgica, ambos de 22 anos.
CANADÁ COLHE FRUTOS DO ACOLHIMENTO AOS IMIGRANTES – O treinador deixou claro, desde o início de seu trabalho, a importância de convencer atletas disponíveis para representar o país. “Eu sempre disse isso: representar seu país é sua vocação. É o seu privilégio, é o seu sacrifício, é você retribuir ao seu país. É mais do que futebol. É muito mais profundo: todo o compromisso com sua bandeira, com sua camisa. Isso é diferente. Então eu não “vendo” nada a eles. Eu apenas explico muito claramente: ‘É disso que você pode fazer parte: mudar seu país para sempre'”, disse ao site The Athletic.
O Canadá é um dos países que mais abraçaram imigrantes nas últimas décadas, oferecendo novas oportunidades de vida para pessoas de todas as partes do mundo. O déficit de mão de obra em determinados setores da economia representa um dos fatores para justificar o convite aos estrangeiros. “Todas as crianças aqui jogam futebol, essa é a realidade”, disse Herdman à BBC. “O país é muito diverso demograficamente. Nós temos muitos imigrantes, incluindo a mim, em que o ‘primeiro amor’ é o futebol”.
Essa transformação cultural também se configura nos atletas da seleção. Não são poucos os jogadores do Canadá com dupla nacionalidade. O atacante Jonathan David nasceu nos Estados Unidos, cujos pais haitianos se mudaram de volta para o país da América Central quando ele tinha três meses de idade. Aos seis anos, a família deixou o Haiti rumo ao Canadá.
De pais nigerianos, Ike Ugbo nasceu na Inglaterra e, aos cinco anos de idade, se mudou para o Canadá com a família. Alguns anos depois, retornou para Londres para jogar na base do Chelsea. Ele tem passagens pelas seleções de base da Inglaterra sub-17 e sub-20, mas decidiu representar a seleção canadense principal.
Já Cristian Gutierrez atuava pela seleção do Chile sub-20 até trocar o país sul-americano pelo Canadá. Os pais de Steven Vitória e Stephen Eustáquio são de Portugal, os de Jonathan Osorio nasceram na Colômbia, enquanto a família de Cyle Larin é jamaicana.
“Para alguém como Stephen Eustáquio, (esse processo) levou dois anos. Foram dois anos em que a cada dois meses, ligava, checava como ele estava, primeiro como pessoa, descobrindo um pouco mais da sua vida. Depois, em segundo lugar, como jogador, dando feedback sobre as atuações e depois, por fim, criando uma imagem e também um aviso do que se oferece aqui na seleção, que é criar um legado para um país, não sua própria carreira pessoal”, explicou.
Os pais de Alphonso Davies nasceram na Libéria, mas deixaram o país durante a Segunda Guerra Civil do país. As cenas diárias de terror fizeram com que a família encontrasse abrigo no acampamento de refugiados Buduburam, em Gana. Foi lá onde nasceu Alphonso, que tem poucas lembranças do local. A família Davies conseguiu emigrar para o Canadá quando ele ainda era criança. Hoje, com apenas 21 anos, o jogador é o principal nome da seleção canadense, uma realidade no Bayern e embaixador do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
A falta de relevância histórica do Canadá no futebol não é nenhuma novidade, mas o desempenho dos últimos anos permite que a seleção sonhe em voltar a uma Copa do Mundo. Os jogadores se adaptaram a características dos jogos fora de casa da Concacaf que não estão acostumados nos clubes onde atuam, como altas temperaturas e gramados de baixa qualidade. São três vagas destinadas à região e o quarto colocado disputa a repescagem. O Canadá ainda tem pela frente El Salvador, Costa Rica, Jamaica e Panamá.