SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A medalha de bronze conquistada por Daniel Cargnin, 23, neste domingo (25), colocou o judô brasileiro no pódio olímpico pela décima vez seguida. Com o feito obtido nas Olimpíadas de Tóquio-2020, o esporte se mantém como o que mais obteve sucesso consecutivo na história olímpica do país. O irônico é que a tradição dos brasileiros no dojô foi forjada por um japonês. E após dois fracassos.
Chiaki Ishii era um dos principais judocas do Japão nos anos 1960. O jovem estava particularmente animado em disputar as Olimpíadas. Seria algo grandioso, já que o judô, arte marcial de origem japonesa, estrearia nos Jogos de Tóquio, em 1964. Talentoso, tentou vaga na equipe nacional, a mais forte do mundo, mas perdeu a vaga na categoria até 80 kg para Isao Okano, futuro campeão olímpico.
Frustrado, Ishii decidiu fazer uma mudança radical. Aos 22 anos, imigrou para o Brasil. A ideia era aproveitar o imenso território brasileiro para conseguir uma terra e virar agricultor. Para isso, inscreveu-se em uma escola rural de Presidente Prudente (SP) para aprender agricultura e a língua portuguesa.
Ishii colocou o plano em prática. Trabalhou duro. As mãos acostumadas à pegada do judô agora empunhavam a enxada. Tentou plantar tomate, pepino, repolho, amendoim… Nada dava certo.
“Assim não dá. Isso não é para mim. Mesmo que eu queira desbravar, sem capital não há como comprar terreno. Vou à São Paulo fazer outra coisa”, conta Ishii em seu livro “Pioneiros do Judô no Brasil”.
Na capital paulista, procurou a academia de Hikari Kurachi, que havia integrado a seleção brasileira em sua primeira competição oficial no exterior: o Pan-Americano de judô, disputado em Cuba, em 1956. Raçudo, conquistou o ouro mesmo com o braço esquerdo machucado.
Na academia, Ishii experimentou o retorno ao dojô, mas dessa vez como instrutor. Ainda jovem, o novo professor mostrava nível técnico bem acima de seus alunos, muitos dos quais integravam a seleção. Como mantinha a nacionalidade japonesa, nem pensava em retornar às competições. Foi quando Kurachi, que já havia se tornado um grande amigo, o aconselhou: “Naturalize-se e lute pelo Brasil. Você não será jovem para sempre. Se você não o fizer agora, irá se arrepender quando for mais velho.”
O processo de naturalização foi concluído em 1968, não a tempo de disputar as Olimpíadas da Cidade do México, no mesmo ano. Mas os resultados começaram a aparecer. Em 1970, Ishii se tornou campeão do Pan-Americano de judô, disputado em Londrina (PR).
No ano seguinte, o Brasil subiu pela primeira vez ao pódio em um Mundial de judô, disputado em Ludwigshafen, na então Alemanha Ocidental -o brasileiro ganhou o bronze na categoria até 93 kg. À frente dele, apenas os japoneses Fumio Sasahara (ouro) e Nobuyuki Sato (prata).
Mas o objetivo de Ishii só ficaria completo nos Jogos Olímpicos de Munique-1972. Ele chegou como um dos favoritos, credenciado pelo bronze no Mundial e pelo fato de o Japão poder competir com apenas um judoca nas Olimpíadas. Não bastasse isso, o único representante da pátria do judô, Fumio Sasahara, foi derrotado ainda na primeira fase pelo soviético Shota Chochishvili.
O “caminho suave” estava aberto ao brasileiro. Mas a competição era duríssima. Na primeira fase, Ishii bateu quatro rivais para triunfar na chave B da competição. Em seguida, enfrentou o alemão-ocidental Helmut Howiller, que competia em casa e tinha vindo da repescagem.
Nova vitória colocou o judoca na semifinal, contra o britânico David Starbrook. Uma derrota inesperada tirou a chance do ouro, mas o bronze estava garantido. Era a primeira vez que o Brasil subia ao pódio olímpico na modalidade. “Não consegui a tão desejada medalha de prata; cheguei a sonhar com o ouro quando o japonês Sasahara foi derrotado pelo russo Chochishvili, mas não passou de uma ilusão. Consolei-me falando para mim que foi o máximo que podíamos fazer”, contou Ishii, em seu livro.
Pioneiro no pódio olímpico e mundial, o judoca ainda orientaria várias gerações. Um de seus pupilos, Walter Carmona, também subiria ao pódio com o bronze no Mundial de Paris-1979 e nas Olimpíadas de Los Angeles-1984. “Sua técnica chegou aos dois campeões olímpicos brasileiros, Aurélio Miguel e eu. Treinei muito com ele, no Centro Olímpico, em São Paulo”, conta Rogério Sampaio, campeão olímpico em Barcelona-1992, no prefácio do livro de Ishii.
“Esses treinamentos foram responsáveis por um salto na minha carreira, alcancei grande evolução técnica graças aos ensinamentos do professor Ishii. Ele é um divisor de águas na história do nosso judô”, completa o hoje diretor-geral do COB (Comitê Olímpico do Brasil).
Em trabalho sobre a genealogia do judô brasileiro, os pesquisadores Alexandre Velly Nunes e Kátia Rubio, colunista da Folha, mostram que os ensinamentos de Ishii chegaram a nomes como Carlos Honorato (prata em Sydney-2000) e Tiago Camilo (prata em Sydney-2000 e bronze em Pequim-2008). Essas lições chegam até as Olimpíadas de Tóquio-2020, em que o judô volta às origens, com a medalha de Cargnin.