Basta fazer uma pesquisa no Google com as palavras-chave “agressão”, “futebol” e “2022” para encontrar diversos casos de violência contra jogadores, treinadores e árbitros nestes primeiros meses do ano. Eles variam de agressões psicológicas a físicas e têm ocorrido em volume e velocidade maiores do que em outras temporadas.
O episódio da manhã de ontem em São Paulo nas proximidades do CT do Palmeiras, a Academia de Futebol, quando o lateral-esquerdo Jorge teve o carro danificado por uma pedrada e foi ameaçado de agressão, é apenas o caso mais recente. Consequência de um comportamento hostil por parte de indivíduos que se dizem “torcedores”, mas que recorrem à violência quando consideram que o defensor do seu clube – jogador e treinador como principais alvos – não faz o que dele se espera.
Jorge foi abordado por dois homens próximo à entrada do CT, onde iria treinar. Vários profissionais já passaram por isso nos últimos meses. Um dos casos registrados foi a série de ameaças de morte a jogadores do Corinthians, como o goleiro Cássio (e sua família) e o atacante Willian, o que deixou todos preocupados no clube. Isso aconteceu no início do mês passado, quando o Alvinegro passava por uma fase irregular dentro de campo.
Na ocasião, o Corinthians se manifestou contra o ato violento – todos os clubes repudiam quase que de imediato as agressões – e como protesto decidiu não publicar conteúdos nas redes sociais durante três dias. Nesse período, seus dirigentes, jogadores e treinador não deram declarações públicas. As ameaças foram feitas por um torcedor do clube.
Um dia antes da ação corintiana, um grupo de torcedores da “Força Jovem”, organizada do Vasco, havia pressionado jogadores e o técnico Zé Ricardo no Aeroporto do Galeão, no Rio. O motivo dos vândalos: descontentamento com os resultados do time.
As intimidações ganharam as redes e escancararam o quanto os atores do futebol estão expostos e vulneráveis diante dessa fúria – não havia seguranças do clube para proteger o elenco no aeroporto.
NÚMEROS ALARMANTES
Nestes pouco mais de cinco meses de 2022, o futebol brasileiro registrou outros tantos casos de agressão, alguns com intensidade maior de violência. Em fevereiro, dois episódios tiveram consequências graves. O ônibus que transportava jogadores do Grêmio, antes de clássico com o Internacional, no Gauchão, foi alvo de atentado, com atletas feridos. O ônibus do Bahia sofreu uma emboscada semelhante antes de jogo na Copa do Nordeste.
Como consequência desses ataque, o goleiro Danilo Fernandes, do Bahia, precisou ser socorrido e passar por cirurgia porque ficou ferido por estilhaços de vidro. Demorou a voltar a jogar, ou seja, a trabalhar. Villasanti, do Grêmio, sofreu um traumatismo craniano.
Talvez o caso mais absurdo até agora tenha ocorrido no mês passado e partido de um treinador, Rafael Soriano, à época na Desportiva Ferroviária. Seu alvo foi uma mulher. Ele deu uma cabeçada na bandeirinha Marcielly Netto, em jogo do Campeonato Capixaba. O técnico foi demitido e suspenso por 200 dias pela Justiça Esportiva capixaba.
REFLEXO DA SOCIEDADE
Mas o que explica tanta violência, ameaças e falta de paciência no esporte mais popular do mundo, que deveria levar as pessoas torcerem e se divertirem? Para Zeca Marques, professor da Unesp e ex-árbitro de futebol, esses casos escancaram o momento pelo qual a sociedade brasileira passa, com altos índices de violência.
“O futebol é, de fato, o reflexo da nossa sociedade. As pessoas estão impacientes em todos os sentidos, porque essa pandemia deixou todo mundo com um pavio ainda mais curto. A violência sempre fez parte desse ambiente do futebol, com casos emblemáticos anualmente, mas ela está se manifestando de uma forma diferente”, diz Zeca Marques. “É incomum que uma torcida faça um atentado com bomba ao seu próprio time”, observa.
O caso ao qual o professor se refere é o atentado de seguidores do Bahia. Segundo ele, “é inadmissível que tenha acontecido isso e não tenhamos alguém punido”. O ataque ao ônibus ocorreu em 24 de fevereiro. No dia 25 de abril, a polícia prorrogou a investigação por mais 30 dias.
Marques acrescenta que, no Brasil, o caráter punitivo é baixo e às vezes beneficia os infratores. “Há uma relação complexa entre os clubes e suas torcidas. Perceba que, em toda derrota de um time, a torcida está pronta para receber os jogadores no aeroporto. Os próprios clubes abrem portas para que a torcida cobre seus jogadores. Isso é papel dos dirigentes, não de uma torcida. As punições pequenas não impedem que as agressões parem, nem as ameaças veladas. Às vezes, até as perpetuam”, destaca.
O professor da Unesp cita o caso da agressão ocorrida no Espírito Santo como exemplo de que as punições são brandas. “A agressão do técnico à árbitra deveria ter uma punição exemplar. Existe um elemento machista na agressão. O Brasil é um país que ataca mulheres e minorias e isso chegou ao futebol”, pontua.
Inicialmente, o treinador havia sido suspenso por 30 dias. Posteriormente, o prazo da punição foi estendido para 200 dias. Além disso, ele recebeu gancho de 12 jogos e multa de R$ 1.212,00 pela invasão de campo e pelos xingamentos à arbitragem do jogo.
AGRESSIVIDADE.
De acordo com a psicóloga Bárbara Abreu, a agressividade é uma emoção fundamental na condição humana, assim como o medo. O problema surge quando há uma inabilidade de manejar essa emoção de uma maneira mais assertiva, ou seja, sabendo a hora certa para utilizá-la. No ambiente do futebol, “há um recorte do comportamento humano em um espaço físico onde as emoções afloram mais do que no dia a dia”.
“Desde Freud (Sigmund), o funcionamento dos indivíduos quando reunidos em bandos ou grupos tem sido tema de debate para psicólogos. A mudança de comportamento que se observa quando um individuo atua sozinho ou em turma normalmente é explicada pela potência do pertencimento. Sozinho, posso me sentir enfraquecido em exercer minhas vontades, desejos ou de me impor. Já em um grupo, me sinto fortalecido, amparado, encorajado a agir, imaginando que o grupo me dará o suporte necessário”, explica Bárbara.
O ambiente esportivo e de alto rendimento gera vários fatores estressantes, especialmente com cobrança excessiva por desempenho e resultados, além de pressões externas e internas. “Não podemos afirmar ainda uma origem única para o aumento da agressividade no futebol”, diz a psicóloga. “Mas cabe aos profissionais da área estarem cada vez mais atentos para trabalhar o manejo das emoções em situações de estresse para tentar equilibrar o quadro e nos aproximar de uma situação mais ideal no mundo esportivo, onde vai prevalecer o respeito pelos rivais. E mostrar penalidades aos que cometem esses atos”, acrescenta ela.
As punições, porém, são o grande calo do futebol brasileiro, segundo o professor Marques. Ele diz que medidas como torcida única mostram a “falência da segurança pública”. A falta de fiscalização na internet é outro elemento preponderante, porque os “haters” acreditam que estão protegidos por estarem por trás de uma tela de PC.
“Haters” são pessoas que disseminam ódio na internet. O corintiano Cássio, por exemplo, foi ameaçado pelas redes, com uma imagem de uma camisa do time e de um revólver.
“Perder um mando de campo é insuficiente. Na final da Libertadores entre River Plate e Boca Juniors, em 2018, o jogo foi enviado para outro continente (foi disputado em Madri, na Espanha), mas até hoje não houve punição. Imagine como seria diferente se um desses times fosse excluído da Libertadores no ano seguinte? E temos esse pensamento do anonimato das redes, que potencializa violência psicológica. E não vai somente ao jogador, mas aos seus familiares também”, adverte Marques.
No livro “Entre os vândalos: a multidão e a sedução da violência”, de Bill Buford, o autor fala das suas experiências como um hooligan temporário, durante quatro anos, narrando os rituais de violência antes das partidas e como podem acabar em hospitais ou até mesmo em morte.
Sobre um confronto com a polícia, ele escreveu: “Esta fase da multidão – esta fase muito, muito feliz – durou aproximadamente quatro minutos. Durante esses minutos, todos, eu inclusive, sentiram o prazer de pertencer, algo semelhante ao prazer de ser estimado ou amado. Havia também outra sensação de prazer, prazer derivado do poder, ainda que esse poder não tenha sido exercido, ainda que fosse apenas um poder em potencial: o poder de uma multidão que tomara conta de uma cidade”
ALERTA
O crescimento das ameaças aos personagens principais do futebol deixa as autoridades em alerta. Em São Paulo, por exemplo, os responsáveis pelas ameaça ao goleiro Cássio foram identificados, tiveram de prestar depoimento e são alvo de investigação.
À Rádio Eldorado, nesta terça-feira, o secretário de Segurança Pública do Estado, general João Camilo Pires de Campos, disse que as agressões a jogadores de futebol são uma preocupação das polícias em São Paulo e que somente um trabalho de inteligência é capaz de evitar que novos casos ocorram. “Estamos preocupados e atentos a isso”, afirmou Campos.