SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Muito antes de se tornar uma referência mundial no skate, Leticia Bufoni, 28, sonhava brilhar por outro esporte, um bem diferente. Ela queria ser jogadora de futebol.
Bufoni nasceu no Tatuapé, mas cresceu no bairro da Vila Matilde, também na zona leste da cidade de São Paulo. Conta que passava os dias inteiros brincando na rua. Não só jogando bola, mas andando de bicicleta e empinando pipa.
“E aí começou a modinha. Todos os meus amigos começaram a andar de skate e não tinha mais ninguém para jogar bola comigo. Acabei pegando um emprestado de um amigo da minha irmã e comecei a andar também”, conta à reportagem.
Corintiana, ela não abandonou o futebol de cara. Era fanática pelo esporte –até hoje posta vídeos brincando com a bola em suas redes sociais. Mas, aos 12 anos, a atleta foi forçada a tomar uma decisão.
“Fui chamada pra jogar no Juventus [tradicional clube da Mooca]. E aí eu teria que escolher, porque os treinos seriam após a escola e não me sobraria tempo para andar de skate. Acho que tomei a decisão certa, né?”, diverte-se.
Assim como o futebol feminino, proibido até o fim da década de 1970, o skate (para homens e mulheres) também era tido como uma atividade ilegal em São Paulo.
Leticia, como muitas outras garotas, cresceu em uma época em que as referências femininas no esporte não faziam parte do universo da televisão brasileira.
Ela se recorda de ter visto na TV notícias sobre nomes como Bob Burnquist e Sandro Dias. Até da Fabíola da Silva, do patins, mas nada de skatistas mulheres. Bufoni já participava de campeonatos quando, pela primeira vez, viu gravações de skate feminino.
“Na época eu já andava de skate há um ano e meio. Um amigo me deu um DVD que se chamava ‘Vila Villa Cola’ [um coletivo de skatistas]. Era um vídeo só de meninas e tinha até uma brasileira, a Tatiane. Até então, eu não tinha nenhuma nenhuma referência, não tinha nenhuma mulher que eu pudesse mostrar para convencer meu pai que o skate era algo para mulher também, não só de homem”, conta.
Hoje, ela tem seis ouros em X-Games, as “Olimpíadas do skate”, e já foi campeã mundial, em 2015 –além de três vezes vice, nos três anos seguintes.
Mudou sua vida em cima de uma prancha. Hoje com 28 anos, mora em Los Angeles (Estados Unidos), cidade para a qual viajou pela primeira vez aos 14 anos, sem nem falar inglês, para competir. E por lá ficou.
Tem 4,4 milhões de seguidores no Instagram e sabe que é referência para milhares de meninas do mundo inteiro, inclusive Rayssa Leal, a Fadinha, medalhista de prata das Olimpíadas aos 13 anos.
Nos Jogos, inclusive, Leticia se envolveu em uma polêmica com outro brasileiro, Kelvin Hoefler, que ela diz conhecer desde criança. No entanto, afirma que prefere não comentar mais o assunto. “Ele conhece minha família inteira, eu conheço a família dele também.”
Na competição em Tóquio, acabou não passando à final. “Quando saí da minha última manobra [da semifinal], na minha cabeça eu estaria na final. Não estou reclamando da nota, acho que erramos na hora de calcular melhor os pontos que eles estavam dando”, analisa.
A atleta diz recordar-se dos “dias inesquecíveis” que passou na Vila Olímpica e já projeta estar nos Jogos de Paris-2024. Ela deseja uma “full experience”, sem máscaras nem restrições impostas pelo coronavírus.
Os Jogos de Tóquio, disputados em condições atípicas em razão da pandemia, ficaram marcados também pelo debate sobre a saúde mental dos atletas.
“As pessoas que não conhecem muito sobre skate exigem que os atletas sempre ganhem medalhas. Não é assim, ainda mais no skate, que é muito difícil a gente competir com o corpo 100% [fisicamente]. Os atletas não são robôs para ir sempre bem”, diz.
Ela torce para que a atmosfera de camaradagem do skate contagie os Jogos, mas, sobretudo, espera que a inclusão no programa olímpico popularize ainda mais o esporte e rompa com preconceitos que ela teve que enfrentar, inclusive dentro da própria casa.
Hoje, seu pai, Jaime, é um de seus maiores incentivadores. Quando Letícia foi convidada para participar dos X-Games pela primeira vez, aos 14 anos, foi ele quem bancou grande parte da viagem do próprio bolso.
Os dois chegaram com a expectativa de ficar 20 dias, mas a então jovem promessa recebeu propostas para participar de mais eventos e ficou. O pai precisou voltar. Seis meses depois, ela tiraria seu visto para estudo e trabalho e passaria a viver no país.
Mas na infância, não era bem assim. Jaime proibia sua filha de andar de skate e a deixava de castigo quando era desobedecido. A mãe e a avó a ajudavam, acobertavam algumas das aventuras que Letícia aprontava “clandestinamente”.
O pai chegou a cortar um shape (a prancha do skate) ao meio com um serrote para que ela nunca mais voltasse a praticar. “Dia seguinte, peguei um novo com um amigo e montei outro skate .”
“O que mudou o pensamento dele foi quando ele me levou, depois de muita insistência, em um campeonato. Era o estadual da Nike, no Parque da Juventude. Quando ele chegou, viu vários skatistas competindo, os familiares ali torcendo, viu que não era aquilo que ele pensava, não era um esporte de maloqueiro, de drogado”, lembra-se.
“Acho que agora vai ser mais fácil a sociedade mudar de opinião por ter visto o skate como um esporte olímpico”, completa.