TÓQUIO, JAPÃO (FOLHAPRESS) – “Tu sei un grande!”, gritaram os jornalistas italianos. Lamont Marcell Jacobs, 26, o homem mais rápido do mundo, passava a caminhar pela pista, bandeira em verde, branco e vermelho, as cores do país, enrolada nos ombros.
Ao ouvir o grito de que é “um grande”, o corredor agradeceu de volta e cerrou os dentes. Ele havia acabado de protagonizar um dos resultados mais surpreendentes da história do atletismo nas Olimpíadas. Com 9s80, venceu a final dos 100 m em Tóquio.
“É um choque”, comentaram jornalistas de outros países presentes no Estádio Olímpico para presenciar quem seria o herdeiro do trono deixado por Usain Bolt, aposentado em 2017.
Em entrevista, o jamaicano, ainda recordista mundial (9s58), apontou Trayvon Bromell (9s77 neste ano) como maior candidato ao ouro. O americano sequer chegou à final. Saiu a reclamar haver algo de errado com seu joelho. Era mais um item para sua longa lista de problemas físicos.
O canadense Andre De Grasse, então, tornou-se o favorito. Mas, tal qual na Rio-2016, ficou com o bronze.
Não havia nenhum jamaicano entre os oito melhores. Um baque para a nação conhecida pelos corredores de velocidade e que teve ouro, prata e bronze nos 100 m feminino. O melhor tempo das semifinais foi dividido pelo chinês Bingtian Su e pelo americano Ronnie Baker. Ambos fizeram 9s83.
O caminho estava aberto para uma zebra em uma prova que leva menos de 10 segundos e na qual qualquer erro é fatal. O britânico Zharnel Hughes percebeu isso ao queimar a largada e ser eliminado. Fez o mesmo que seu compatriota Linford Christie na final de Atlanta, em 1996.
Mas Christie, nascido na Jamaica e naturalizado no Reino Unido, havia sido o último europeu medalha de ouro na prova, em Barcelona-1992.
Isso durou até aparecer Lamont Marcell Jacobs, um herói italiano improvável, nascido em El Paso, no Texas. Filho de um militar americano com uma italiana que morava em Vicenza, a criança morou nos Estados Unidos apenas nos primeiros 18 meses de vida.
Ele fala um inglês mal, vacilante. É fluente apenas em italiano. Para conversar com o pai hoje em dia, confessa usar um app de tradução.
“Sou italiano em todas as células do meu corpo”, diz, quando questionado sobre o assunto.
Quase a festa de Jacobs foi ofuscada por outro italiano. Quando o velocista entrou na pista, Gianmarco Tamberi comemorava sua medalha de ouro no salto em altura, posição dividida com o qatari Essa Mutaz Barshim.
Tamberi deu mais de uma volta na pista, jogou-se pelo menos três vezes no chão e rolou. Chorando e gritando, abraçou voluntários e teve de ser quase retirado pelos funcionários dos Jogos. Os 100 m precisavam começar.
Enquanto Jacobs fazia sua festa de maneira bem mais discreta, apesar de ter vencido a prova mais nobre do atletismo, Tamberi voltou para celebrar de novo, desta vez com os jornalistas de seu país.
Mais por coincidência do que premonição, a imagem do italiano foi a primeira a aparecer no telão do estádio quando a final dos 100 m foi anunciada pelo sistema de som no estádio. Ele colocava o número 3 nos shorts. Deu um tapa com raiva. Em seguida, fez o mesmo, mas no rosto barbado. Depois, na cabeça.
“Conseguir isso que aconteceu hoje aqui, é incrível. Não tenho palavras para descrever”, ensaiou explicar, em inglês, logo na saída da pista.
A poucos metros, Tamberi continuava a festejar em entrevista para a RAI, a emissora de TV estatal da Itália, abraçado ao qatari com o qual dividiu a medalha de ouro.
“Ele é um grande cara”, elogiou Jacobs sobre o saltador, após ser questionado sobre outro atleta mesmo minutos após ter vivido o maior momento de sua carreira. “É uma figura. Hoje à noite vamos jogar video game juntos.”
“Se você resiste e insiste, você conquista”, repetiu, em italiano, para repórteres do seu país. Apontou também para uma das tatuagens que possui no braço para exemplificar o que dizia, mas não entrou em detalhes. Ele tem várias e mais de uma faz referência ao problemático relacionamento com seu pai, algo que o medalhista olímpico não gosta muito de comentar, não importa em que língua.
Em outras entrevistas, Jacobs já pediu para ser questionado apenas sobre atletismo. Gosta de falar sobre o desejo de correr mais rápido que os outros, missão que cumpriu em Tóquio. Nas semifinais, pouco mais de uma hora antes da sua consagração, já havia batido o recorde europeu ao correr a prova em 9s84.
Talvez por não ser considerado favorito, o italiano não teve de conviver com a sombra de Bolt. Andre De Grasse disse que sua ambição era ocupar o lugar deixado pelo jamaicano. Fred Kerley, Ronnie Baker (EUA) e Akani Simbine (África do Sul) também deixaram claro o desejo de preencher o vácuo criado pela aposentadoria do maior velocista da história.
Trayvon Bromell se incomodou tanto que sequer chegou à decisão, um duro golpe para quem disse, antes de embarcar para Tóquio, ter a ambição de se tornar um ícone do esporte.
Jacobs é o primeiro medalhista de ouro italiano nos 100 m na história dos Jogos. Mas parecia que não seria. Fred Kerley, com sonhos de ser o novo Bolt, largou mais rápido e foi o melhor nos primeiros 50 metros.
O garoto que cresceu em Desenzano del Garda, uma pequena cidade ao sul do Lago de Garda, no norte do país, melhorou na metade final da prova ao usar a mesma fórmula que aprendeu quando começou a competir, aos 10 anos.
Os primeiros passos são largos, mas depois, eles devem ser mais curtos e mais rápidos.
“Assim fui ensinado”, disse.
E foi assim que conquistou o ouro, o trono de Usain Bolt e se tornou herói do país que considera sua única pátria. A mesma de Gianmarco Tamberi que, enquanto este texto é publicado, continua a comemorar seu ouro no salto em altura.