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Lazer e CulturaCircos, que ridicularizavam o diferente, agora exaltam as pessoas bem longe do padrão

Circos, que ridicularizavam o diferente, agora exaltam as pessoas bem longe do padrão

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma gorda, um anão e uma trans entram no circo. Começo de piada? Não mais. Tem marmelada maior do que insistir num circo que só agrega corpos fora do padrão reverenciado numa época se for para rir deles? Tem, não, senhor.

É sob a bandeira da diversidade que artistas vêm se desvencilhando do imaginário popular do picadeiro como lugar do bizarro. Ana Flávia, Giovanni e Vi, dois palhaços e uma contorcionista que em outros tempos seriam relegados ao terreno do grotesco, participam de “Corpos Circenses”, debate que integra a sexta edição do Festival Internacional Sesc de Circo.

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O evento começa nesta sexta-feira e vai até 4 de setembro, com transmissão online. A mesa do trio acontece no dia 2, com mediação de Ana Luiza Bellacosta, a palhaça Madame Froda no Cabaré da Nega.

A ideia é discutir como certos biotipos só eram bem-vindos no circo se acoplados a números que os expunham ao ridículo. Mulher barbada. Monga. A transformista. O homem que vira fera.

“Nossos corpos são encarados de forma fantasiosa, acham que somos um personagem”, diz Vi Marquez, de 22 anos, contorcionista que se pôs como desafio não se dobrar à transfobia nos picadeiros. “Aos poucos a gente vai alcançando alguns lugares, mas é muito preconceito ainda. Não estão preparados para ver um corpo trans. Uma mulher de pau. Um homem com peito. Temos uma longa jornada aí.”

A dela como mulher transgênero tem só dois anos, mas vários solavancos. Conta que teve de bater o pé para usar o banheiro feminino da Escola Nacional de Circo, que frequentava quando começou sua transição.

Mas nada se compara ao que passou numa escola francesa de musicais. Foi aprovada na audição, se mudou para a Europa e, chegando lá, “aconteceu exatamente o que era meu maior medo, não ser entendida e respeitada”.

Teve de usar roupas masculinas, prender o cabelo longo num coque e o esconder sob um chapéu. “Foi a primeira vez que usei terno na minha vida”, lembra.

Pior. Exigiam de Marquez “atitudes de macho” em algumas cenas, como “bater na bunda das meninas, umas cenas másculas de amasso”, diz. Era para ter durado dois anos. Ela conseguiu ficar quatro meses.

Ana Flávia Garcia, de 48 anos, se convenceu cedo de que tinha cara de palhaça. Começou no ofício de Carequinha, Bozo e Patati Patatá há 27 anos, depois de concluir que o circo a recepcionaria melhor do que o teatro.

“Não tem muito personagem para o corpo gordo”, diz. “Não há nenhuma rubrica dizendo que a Antígona é magra, mas [a tragédia grega] não comporta ela ser gorda. Você não vai ser convidada para fazer a Julieta, vai ser convidada para fazer a aia da Julieta.”

Seu físico, hoje ela compreende, virou sua melhor arma. Ela se especializou nos gestos mínimos e, quando atingiu seu peso máximo, 174 quilos, criou o número “Inflamada 174”. Com orgulho.

A palhaça Ana Flávia Garcia, a Ana Tirana Divulgação **** Ana Flávia vê um paradoxo aí. “No meu maior ‘shape’, já bastante adoecida pelas comorbidades, eu recebia um prêmio de melhor atriz.” Foi por seu papel em “Tsunami”, no Sesc do Teatro Candango em 2017. Ainda que a gordura, no seu caso, cobrasse uma fatura médica, isso nunca fez dela uma artista limitada. Pelo contrário. Ganhava troféus.

Com a “saúde ameaçada real e oficial”, ela precisou emagrecer. Fez bariátrica e, quando começou a perder peso, temeu perder junto a graça. Não detestava seu corpo, o via como aliado. Ficou apegada a ele, por um momento, e à ideia de que a obesidade era pré-condição para sua palhaçaria.

Um novo corpo, com pele flácida, alguma gordura e nova musculatura, é o novo instrumento dessa “adepta da promiscuidade artística”, a mesma que dizia ter uma “mãe que não passou açúcar em mim, mas me passou no ovo, na farinha de rosca, fritou, jogou queijo, molho e me fez à parmegiana”.

Ana Flávia -ou Ana Tirana, persona que adota com galhofa nas redes socias– diz que o circo é, por excelência histórica, “a casa dos freaks”. Nele sempre reinaram “os renegados, os outsiders, os estranhos para a normatividade física”.

Um filme que retrata bem isso é “Freaks”, lançado por Tod Browning em 1932. Sua cena mais clássica mostra a trupe dos “bizarros” celebrando o casamento de um dos seus, o anão Hans, com uma trapezista considerada “normal”, a Cleópatra, na verdade interessada em sua fortuna.

“We accept you, one of us!” -nós o aceitamos, um de nós–, entoam os amigos de Hans para acolher a jovem que, nessa hora, não consegue esconder seu horror. Berra “freaks, freaks!” -aberrações, aberrações.

O circo, nas palavras democráticas de Ana Tirana, acaba servindo de “bonde do fortalecimento” para quem, por desviar de padrões estéticos, desde cedo aprende a “se tornar flecha antes de se tornar alvo”.

Os tempos estão mudando, é verdade, mas devagar, quase parando para alguns nichos circenses. “Ainda vai ter gente rindo do humor ultrapassado”, diz Ana Flávia. E de todos os lados. “Existe bolsominion no circo, mas também existe a esquerdofalência.”

Essa seria a ala que evoca elementos tradicionais dessa arte para justificar espetáculos encharcados de preconceitos que harmonizam mal com o século 21. Como fazer piada com minorias. É um mundaréu de argumentos como “nunca foi ofensa, a tradição é assim”, segundo a palhaça brasiliense.

Giovanni Venturini, de 29 anos, a princípio ficava meio assim de ser palhaço. “Sempre tomava cuidado para não cair no estereótipo da graça pelo tamanho.” Por anos preferiu seguir outro rumo artístico. Fez TV, cinema, teatro e publicidade. Nem sempre conseguia escapar do lugar comum para pessoas como ele, com nanismo.

Foi o Mestre dos Magos numa propaganda com personagens do desenho “Caverna do Dragão” e, numa releitura de “A Fantástica Casa de Bonecas”, peça de Henrik Ibsen com notas feministas, encarnou um dos personagens masculinos. Todos pequenos fisicamente.

Helena Ranaldi, que interpretou a submissa Nora, explicou a este jornal, na época que “a opção por atores anões é muito interessante -obriga as personagens mulheres a se abaixarem e a rastejarem para falar com os homens”. “É um retrato físico da submissão.”

Giovanni decidiu deixar o circo de lado por um tempo por receio de ficar estigmatizado. O problema é que ele gostava muito de ser palhaço.

Voltou e foi desenvolvendo maneiras de dar seu recado. Um dos esquetes que criou o retratava como bobo da corte, “lugar clássico que enxergam para pessoas com nanismo”. Durante a cena, dizia estar por aqui com esse papel caricato. Chega. Queria provar que poderia ser cavaleiro medieval.

“Eu ia passando por testes de habilidade -malabares, cortar melancia etc. Vai dando errado e ficando cômico. No final, volto a ser o bobo da corte por opção”, conta. “Falo que o que importa é ter liberdade de escolher e que gosto de ser bobo da corte para poder falar as verdades. E digo que vocês acham que estão rindo de mim, mas, na verdade, sou eu que estou rindo de vocês.”

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