Durante nove anos, Joyce Carol Oates disse não. Mas, um certo dia, para surpresa do jornalista, crítico e cineasta sueco Stig Björkman, veio o sim para um documentário sobre sua vida e carreira. “Eu acho que ela só aceitou porque eu continuei insistindo”, afirmou Björkman ao Estadão, em entrevista por videoconferência. Os dois se conheciam desde a virada do século, quando ele publicou um livro sobre a escritora. Tornaram-se amigos. “Eu acho que seu marido, Charlie, queria que ela fizesse, talvez por desejar aparecer no filme”, afirmou, sorrindo. O resultado pode ser conferido em Joyce Carol Oates: Um Corpo a Serviço da Mente, que passa hoje, 9, no Festival É Tudo Verdade.
A conselho de seu produtor, Björkman, que escreveu sobre Ingmar Bergman e Lars Von Trier e fez um filme sobre Ingrid Bergman, começou imediatamente, com medo de que a discreta escritora desistisse. Em pouco mais de um mês, eles estavam em sua casa. Houve uma paralisação por conta de questões de financiamento, mas aí o filme já estava em andamento. A possibilidade de ela voltar atrás era menor.
O longa é inteiramente centrado em Joyce Carol Oates, sem cabeças falantes dizendo quão maravilhosa ela é. O único que diz alguma coisa é seu segundo marido, Charles Gross, morto em 2019, antes da finalização do documentário. Mas há imagens de arquivo. Elas dão conta de alguns aspectos de sua infância bastante simples, em uma pequena fazenda ao norte do Estado de Nova York, e da sua vida na Universidade Syracuse. “Ela frequentou uma escola com apenas uma sala de aula para todos os alunos. Mas, graças à sua força e inteligência, conseguiu uma bolsa de estudos”, afirmou o diretor. “Ela é um exemplo fantástico de como é possível nos Estados Unidos sair do nada e ainda assim ser capaz de usar seus talentos. Sua história é muito extraordinária.”
Uma das heranças dessa criação em uma família simples é a ética do trabalho da classe trabalhadora. Em uma entrevista antiga exibida no documentário, Joyce Carol Oates explica, com seu humor tímido, que trabalha horas a fio porque seu gato, muito gordo, dorme no seu colo, e, se ela tenta se levantar, o bichano crava suas garras em suas coxas. Mas o que Stig Björkman observou é que a autora trabalha o tempo todo.
Sem férias
Ela começa cedo, por volta das 7 horas da manhã, com um copo de água e nada mais. Passado um bom tempo, Joyce finalmente almoça e sai para uma caminhada. E depois trabalha de novo. “Quando estivemos em sua casa, filmamos em diversos aposentos e no jardim. E leva um certo tempo para ajustar a câmera e a luz”, explicou o diretor. “Ela sempre perguntava: quanto tempo vai demorar? Meia hora? E lá ia de volta a seu escritório para continuar a escrever.” Nas viagens à Espanha e a Israel filmadas por Björkman, Oates sempre estava escrevendo, seja na sala de espera ou no voo. Seu prazer está no trabalho, que inclui também dar aulas. Férias não estão em seu dicionário.
Essa disciplina e disposição para o trabalho explicam sua obra de tamanho monstruoso, com mais de 100 títulos. Não raro, publica mais de um romance por ano. Ao ser indagada em uma entrevista antiga sobre os temas que aborda – feminismo, racismo, violência -, ela responde que escreve sobre seres humanos. E é verdade. “Mas seus trabalhos traçam um panorama contemporâneo fantástico dos Estados Unidos”, contou Björkman. “E os aspectos políticos, sociais, a condição das mulheres. Quase todas as suas obras têm conotações políticas e sociais.” Ela também não esconde suas opiniões no Twitter.
Duas em uma
Mas, para Um Corpo a Serviço da Mente, o diretor teve de se concentrar em menos de dez obras. Elas foram escolhidas não apenas por sua importância artística, mas pelos temas e pela relação com passagens da vida da escritora. Black Girl/White Girl (2006) funciona para lembrar como, na faculdade, ela teve uma colega de quarto negra, o que a fez pensar mais seriamente sobre o racismo. Eles (1969) trata de uma família lutando para sobreviver em Detroit de 1930 a 1967, em meio aos protestos da população negra, que Oates presenciou. A Filha do Coveiro (2007) baseia-se na vida de sua avó, que escondeu sua verdadeira identidade durante anos. E Blonde (2000), uma ficção inspirada na dualidade de Norma Jeane Mortenson e a personagem que ela criou para si, Marilyn Monroe, discute o culto à celebridade e o papel da mulher.
O livro acaba de virar filme dirigido por Andrew Dominik, com estreia prevista para o segundo semestre. Coincidentemente (ou não), como Marilyn e como sua avó, Joyce Carol Oates também se divide: uma é a pessoa, outra é JCO, a escritora. “Ela prefere manter uma certa distância entre as duas”, conclui.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.