Há cem anos, no dia 13 de abril de 1922, nascia no Rio de Janeiro Dona Ivone Lara. Há cem anos, nascia uma “compositora cuja riqueza melódica a coloca no panteão dos grandes autores não apenas brasileiros, mas do mundo”.
A opinião é da historiadora Mila Burns, professora de Estudos Latino-Americanos do Lehman College (City University of New York). Ela lançou em 2009 o livro Nasci para Sonhar e Cantar – Dona Ivone Lara: a mulher no samba e, no domingo, 17, lança Sorriso Negro, seu segundo trabalho sobre a compositora, no Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro.
“Ela era genial. Uma grande musicista, a importância de seu trabalho é inconteste. E ela significou muito também para o movimento feminista negro, um aspecto que não costuma ser tão lembrado”, diz Burns.
Dona Ivone Lara nasceu em uma família musical. A mãe era cantora, o pai, violinista. Na casa do tio Dionísio Bento da Silva, participou de inúmeras rodas de choro. Com a Tia Teresa, ouviu as cantigas dos escravos negros.
Mais velha, estudou música com Zaíra de Oliveira e Lucília Villa-Lobos, pianista e mulher do compositor, com quem Ivone Lara chegou a se apresentar em algumas ocasiões. Sua primeira música foi composta aos 12 anos – Tié, em parceria com o tio, Mestre Fuleiro, e o primo.
Aos 17 anos, aprendeu cavaquinho – e resolveu se inscrever no concurso da Escola de Enfermagem Alfredo Pinto, onde se formou em 1943 (dois anos depois, começaria a estudar para ser assistente social; durante trinta anos, atuou como enfermeira, trabalhando no Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, ao lado da doutora Nise da Silveira).
Ao mesmo tempo, seguia na música. Frequentando a escola da samba Prazer da Serrinha, compôs em 1947 Nasci para Sofrer, canção usada no desfile do ano. Não era feito pequeno. E, em 1965, outro momento histórico: tornou-se a primeira mulher a integrar a ala dos compositores do Império Serrano.
“A música de Dona Ivone Lara possui uma riqueza melódica muito grande”, diz Burns. “Ela te pega pela mão e te leva para lugares diferentes. Sempre há algo novo. O cantor João Cavalcante está gravando um disco com canções dela e, ouvindo o primeiro single, fico impressionada: o piano segue em uma direção, a sanfona, em outra, o mesmo com o violino, com a voz. Ela fazia com que várias melodias conversassem ao mesmo tempo.”
“Um de seus parceiros, Délcio Carvalho dizia que, tocando com Dona Ivone Lara, ela podia começar um improviso com a voz e dali saía uma outra música.”
Burns conta que, ao desenvolver o mestrado em antropologia no Museu Nacional, tinha como objetivo estudar as mulheres do samba: sempre a intrigava a presença de muitos compositores e poucas compositoras. E, orientada pelo antropólogo Gilberto Velho, acabou focando no trabalho de Ivone Lara (a dissertação foi adaptada extensivamente e virou o livro Nasci para Sonhar e Cantar, lançado pela editora Record).
“Ela foi a exceção que prova a regra, porque conseguiu conquistar espaço em um universo profundamente machista”, explica a historiadora. E como isso se deu? Para Burns, não há apenas uma resposta possível.
“Primeiro, ela era uma grande musicista. Em segundo lugar, como acontecia com muitas mulheres de destaque, ela teve por trás a autorização de um homem. Seu tio, Mestre Fuleiro, foi um dos fundadores do Império Serrano. E ela entendia o machismo, e criava estratégias para lidar com ele. Escolhia muito bem os parceiros ou os momentos certos de mostrar seu trabalho.”
O próprio fato de ter um trabalho fixo fora do samba a ajudava. “Pode parecer paradoxal que estar fora do ambiente do samba a tenha ajudado. Mas ela tinha muito claro que uma carreira em paralelo era uma base de sustentação que lhe permitia trabalhar com a música da maneira como queria.”
Há quatro anos, Burns foi convidada pela editora Bloomsbury a escrever um livro sobre o álbum Sorriso Negro, de 1981 (que seria editado pela Cobogó no Brasil). “Eu já estava distante desse universo, trabalhando no doutorado sobre a ditadura militar no Brasil. Mas me pareceu interessante abordar o aspecto político do álbum, que é lançado já no final da ditadura. E me propus a entender esse lado dela. Durante as muitas conversas que tivemos na época do mestrado, ficou bem claro para mim que ela nunca atribuiu para si mesma uma postura de ativista. O que me fez cunhar um outro temor, resistência pela existência. Ela nunca se ligou a partidos políticos, com o movimento feminista ou com o movimento negro. Mas a música dela teve um impacto grande nesse debate justamente por ela ter sido uma mulher que ocupou um espaço importante em um contexto machista.”