RIBEIRÃO PRETO, SP (FOLHAPRESS) – Madeline Miller perdeu as contas de quantas vezes leu a “Ilíada” antes de escrever “A Canção de Aquiles”, sua releitura gay sobre a Guerra de Troia, que acaba de chegar às livrarias brasileiras após viralizar no TikTok.
A paixão surgiu aos cinco anos, ao escutar o poema lido pela mãe, e avançou na adolescência, quando Miller aprendeu grego só para ler a versão original. A obra seria seu objeto de estudo na faculdade e guiaria sua carreira como professora de ensino médio, profissão que exercia antes de ser escritora.
A cada releitura, Miller descobria detalhes que se perdiam nas traduções, mas nunca chegava à resposta para o que mais interessava a ela se Aquiles e Pátroclo eram um casal. Em dúvida, ela decidiu escrever sua própria versão do poema de Homero, a quem é atribuída a autoria da “Ilíada”.
“Alguns pesquisadores dizem que só não há evidências no texto de Homero de que eles sejam um casal porque não precisava ser explícito. Os gregos antigos naturalmente os enxergariam desta forma. Com o tempo, porém, essa interpretação foi apagada de propósito, por homofobia”, diz a autora, lembrando releituras como “Troia”, estrelado por Brad Pitt, em que os personagens são primos.
A visão de Miller é parecida com a do professor André Malta, da Universidade de São Paulo, que se especializou nos poemas de Homero. “A interpretação depende do leitor, mas os gregos os viam como um casal, principalmente em locais onde havia liberdade sexual, como Atenas”, diz.
Para evitar assincronias, Miller decidiu não alterar o que havia sido contado por Homero nem tentar criar paralelos com o mundo contemporâneo, como fez Rick Riordan com “Percy Jackson”. O que ela fez foi preencher lacunas que o poeta não havia explorado. Seu ponto de partida, portanto, não foi a Guerra de Troia, mas a infância e a adolescência dos personagens, quando eles se apaixonam.
Sob pressão por estar “reescrevendo Homero” ou “fanfic de Homero”, como disse jocosamente um ex-namorado, Miller levou uma década para escrever o romance. Queria ter certeza de que cada detalhe, até as serpentes que habitam o cenário, fosse retratado corretamente.
“Para mim, este texto era sagrado. Fiquei muito nervosa no começo. Depois, entendi que essas histórias sempre foram recontadas. Não há uma versão oficial de Ilíada. Tem a de Homero, a de Ésquilo, que se perdeu, a de Shakespeare, que veio séculos depois, então eu não estava fazendo nada novo”, diz.
O romance ganhou o Orange Prize for Fiction, prêmio que reconhece a melhor obra de ficção em língua inglesa escrita por uma mulher, e fez sucesso nas livrarias. Ao ser lançado, em 2012, vendia nos Estados Unidos mil exemplares semanais, segundo a Nielsen, empresa americana de inteligência de mercado.
Quase uma década depois, o livro repentinamente passou a vender 10 mil exemplares por semana e atingiu a marca de 1 milhão de cópias vendidas. O motivo? Um vídeo de 30 segundos no TikTok, visto por 1,6 milhão de pessoas, que o destacava entre “livros que fazem chorar”.
O sucesso levou a editora Planeta a relançar o romance, que havia sido editado em português pela Jangada em 2013, mas estava esgotado. Distante das redes sociais, a autora não entende a dinâmica que alavancou as vendas, mas diz acreditar que os temas que aborda têm paralelos contemporâneos que cativam o leitor.
“Os mitos gregos são atemporais. Ilíada começa numa briga sobre como um líder está enfrentando uma epidemia. Tem coisa mais atual que isso? Os gregos usavam os deuses como metáforas para líderes humanos que se esquecem da responsabilidade e ficam obcecados pelos próprios desejos, prazeres e pelo poder o que tem acontecido muito nos EUA”, diz.
Outro elemento que a autora diz crer ter impulsionado o livro é a homossexualidade dos personagens, um elemento que atrai cada vez mais os leitores jovens, principalmente no TikTok, que foi de uma usina de bobagens a uma máquina poderosa de vender livros.
“Romances gays sempre terminavam em desastre ou morte. Sabia que o meu também terminava em morte, mas eles continuam juntos no mundo inferior. É uma tragédia de guerra, mas não de amor”, descreve.
Já em seu segundo romance, a proposta era escrever uma releitura feminista da “Odisseia” sob a perspectiva de Circe, a feiticeira que dá nome ao livro, como também fez Margaret Atwood com Penélope. No original, ambas têm pouco destaque.
“No mundo antigo, o foco era sempre os homens, principalmente os ricos e poderosos. Mulheres são apagadas e, quando aparecem, são representadas de maneira rasa. Todos estes personagens, que ficam à margem dos protagonistas, merecem ter suas histórias contadas”, diz.
A CANÇÃO DE AQUILES
Preço R$ 59,90 (336 págs.); R$ 43,90 (e-book)
Autor Madeline Miller
Editora Planeta
Tradução Gilson César Cardoso de Sousa