Em meio à oceânica obra sobre a trajetória do líder fascista Benito Mussolini, o professor universitário e escritor italiano Antonio Scurati prepara o terceiro e último volume e também a adaptação da obra para uma série televisiva na plataforma Sky Studios. Os dois primeiros livros – M: O Filho do Século e M: o Homem da Providência – já saíram no Brasil, pela Intrínseca. Scurati concedeu entrevista exclusiva por e-mail ao Estadão.
O escritor chama sua obra de ‘romance documental’. Isso significa que usa técnicas de ficção, mas apenas para narrar fatos exaustivamente pesquisados e documentados.
A estratégia deu certo. A obra virou best-seller na Itália e foi traduzida em mais de 40 países. Deu ao seu autor o prêmio Strega, importante distinção literária italiana. Deve ainda ampliar o número de leitores com a dramaticidade do terceiro volume, que registra o envolvimento na guerra e o desfecho da carreira do Duce – sua queda do poder e posterior fuzilamento, em Milão, pelos partigiani, membros da resistência antifascista durante a 2ª Guerra Mundial. O público, por certo, deverá ser ampliado quando for lançada a série pela Sky.
Esta será fruto de uma tarefa difícil: ‘Estamos trabalhando no roteiro há muito tempo’, diz Scurati. Há vantagens: ‘A série de televisão permite, mais do que o cinema, um enorme arco de história e um vasto coro de personagens’. Mas apresenta seus desafios: preservar o caráter documental da história, dar conta das nuances e reviravoltas de uma narrativa polifônica e, acima de tudo, não gerar empatia com Mussolini nos espectadores – um risco se mantida na série o formato de longas narrativas do protagonista em primeira pessoa, presente no romance.
M: o Filho do Século, primeiro volume da trilogia, termina com a Marcha sobre Roma, que culminou com a ascensão de Mussolini ao poder em 1922. O segundo, M: O Homem da Providência, começa com Mussolini enfrentando uma sofrida úlcera no duodeno e termina sendo atormentado por fantasmas do passado no próprio mausoléu que edificou para celebrar a glória do fascismo. No meio, muita coisa, conquistas em sua maior parte.
Já no poder, o Duce teve de enfrentar a acusação de envolvimento no assassinato do deputado socialista Giacomo Matteotti. Foi alvo de quatro atentados contra sua vida, e escapou com escoriações que não comprometeram sua saúde e alimentaram a fama de invulnerável. Levou com mão de ferro a truculenta guerra colonial na Líbia. Com o Tratado de Latrão conseguiu um acordo fundamental com a Igreja Católica e, ao contra-atacar no Caso Matteotti, usou a defesa como pretexto para demolir a democracia italiana, transformando-a em tirania. ‘A habilidade política de Mussolini é inquestionável’, admite Scurati. ‘Foi não apenas o fundador do fascismo, mas também o inventor do populismo.’
Sua jogada era ser o homem da providência, ‘aquele líder que promete resolver todos os problemas com um gesto brusco, eliminando a complexidade da vida moderna e reduzindo-a a uma oposição básica e brutal entre amigos e inimigos’. A receita faz parte da ilusão e da sedução populista.
Com a emergência de líderes autoritários, nacionalistas e populistas em várias partes do mundo, da Ásia às Américas, passando pela Europa, esse estudo do líder fascista, escrito com a pena da ficção e a tinta da melancolia (obrigado, Machado de Assis) ganha ampla e surpreendente atualidade.
Abaixo, a entrevista com Antonio Scurati.
Como você decidiu, em vez de escrever um estudo tradicional sobre o fascismo, ou uma biografia convencional de Benito Mussolini, fazer um romance sobre a era fascista, mas estritamente baseado em fatos reais? Um romance documental, portanto. Quais são as vantagens desse tipo de opção?
Um romance sobre Mussolini e fascismo nunca havia sido escrito e não por acaso. No passado, o clima político ideológico impedia isso e, portanto, nos impedia de acertar contas plenamente com o próprio fascismo. A forma do romance tem, de fato, a virtude de ser o mais ‘popular’ entre os gêneros literários, capaz de cativar, excitar e envolver o leitor ao colocá-lo no fluxo dos acontecimentos históricos como se fosse ele a vivenciá-los em primeira pessoa. Em virtude disso, o romance é também o mais democrático entre os gêneros literários: admite qualquer pessoa nesse tipo de conhecimento específico da literatura, sem exigir carteira de identidade ou habilitação literária.
Você acha que esse tipo de decisão sobre a forma do livro tem um efeito mais positivo em seus leitores? Dado o sucesso do trabalho, pode-se dizer que encontrou seus interlocutores em vários países do mundo, além da Itália, é claro.
Eu estava convencido disso e creio que os fatos provaram que eu estava certo. A narrativa ficcional, mas rigorosamente documental do fascismo representava em si mesma – profundamente democrática, pelas razões já mencionadas -, uma resposta oposta à ditadura fascista que estava narrando. Para milhões de leitores, na Itália e no exterior, a leitura de M foi e continua sendo um exercício de cultura democrática.
Você disse que na Itália ainda existe uma visão um tanto benevolente de Benito Mussolini, em contraste com a imagem maléfica fixada em Hitler.
A república e a democracia italianas se fundamentam no antifascismo, por sua vez baseado na narrativa do fascismo do ponto de vista de suas vítimas, de militantes antifascistas, tendo como centro o mito da Resistência. Com o início do novo século, esse tipo de antifascismo historicamente se desvaneceu e então ressurgiram novas narrativas revisionistas, também alimentadas pela propaganda da nova direita. Muitas vezes, esses revisionistas odiosos e perigosos se apoiam em uma visão distorcida que tende a representar a figura de Mussolini em tons de comédia, gerando assim um enorme mal-entendido sobre uma figura responsável por uma grande tragédia política.
Em sua trajetória de consolidação da ditadura, Mussolini teve de enfrentar muitos problemas. Ele usa a violência, mas também precisa domar seus pit bulls, como Roberto Farinacci. Diante das acusações no caso Matteotti, ele se fortalece no processo de demolição da democracia italiana. Alia-se à Igreja, no Tratado de Latrão, e sai fortalecido diante da maioria católica do país. Seriam provas de uma grande capacidade política, paralela à vocação totalitária do regime?
A habilidade política de Mussolini é inquestionável. Foi o primeiro a pressentir o que a política se tornaria na era das massas e fez uso inescrupuloso dessa intuição. Ele não foi apenas o fundador do fascismo, mas também o inventor do populismo, que ainda hoje é desenfreado. A expectativa de um ‘homem da providência’, ou seja, de um líder que promete resolver todos os problemas com um gesto brusco, eliminando a complexidade da vida moderna, reduzindo-a a uma oposição básica e brutal entre amigo e inimigo, faz parte da ilusão e da sedução populista.
Você tende a considerar o fascismo como algo específico daquele determinado momento histórico ou admite algo como um ‘fascismo eterno’, que atravessa tempos históricos, de que falava Umberto Eco?
Tive o privilégio de conhecer e conviver com Umberto Eco. Um mestre. Nesse ponto, porém, discordo dele. O fascismo foi um fenômeno eminentemente histórico, gerado pelo século da história como uma tentativa de assaltar a história. Isso não significa que seja historicamente concluído, mas que evolui historicamente e nos obriga a renovar a luta contra suas novas formas.
Nesse sentido, o sucesso do livro pode ser explicado pelo interesse despertado pela ascensão de líderes autoritários em várias partes do mundo?
Sem dúvida. Apesar de o romance narrar acontecimentos de cem anos atrás, muitos leitores o utilizaram como uma espécie de mapa cognitivo para se orientar nas incertezas do presente e compreender as novas ameaças antidemocráticas.
Há, na esquerda brasileira, o debate se o governo de Jair Bolsonaro é fascista ou pré-fascista ou se é um fenômeno diferente e incomparável ao de outros tempos. O termo fascista se tornou apenas um insulto ou o fascismo tradicional ainda pode nos ensinar algo sobre governos autoritários que estão surgindo em várias partes do mundo, com líderes como Trump, Bolsonaro, Erdogan, Orbán, Salvini e outros?
Alguns dos líderes que você mencionou são portadores, em seu DNA político, de genes que são propriamente fascistas (acho que Bolsonaro é um deles), outros não. Mas todos eles, com nuances diferentes, são populistas e nacionalistas; como tais, não como fascistas, descendem, consciente ou inconscientemente, de Mussolini como o inventor da forma populista de liderança. Um tipo de líder que governa as massas não as precedendo em direção a objetivos e ideais elevados, mas seguindo-as, ficando um passo atrás das massas, enchendo-se de seus humores, quase sempre maus humores, humores mórbidos (ódio, medo, ressentimento, rancor) e avivando-os.
Alguns estudiosos argumentam que os líderes fascistas catalisam sentimentos de frustração e ressentimento em partes da população. Foi assim para Mussolini?
Não há dúvidas. Mussolini tinha sido um dos líderes mais amados e radicais do socialismo revolucionário, o partido da Esperança (seu símbolo era o sol do futuro). Quando, porém, foi expulso do Partido Socialista, percebeu que havia uma paixão política mais poderosa que a esperança e essa era o medo. O que para os socialistas era esperança – o novo mundo nascido da revolução – para todos os outros era medo. Ele depositou toda a sua aposta no medo, o que os líderes populistas ainda fazem hoje
O outro tema é o da violência. O fascismo faz uma opção clara pelo uso da violência, culto das armas e truculência política. Seus livros esclarecem o papel da violência na ascensão de Mussolini, incluindo a arregimentação das milícias como no caso dos Arditi, descrito no primeiro volume. Esse traço – o uso da violência – é o caráter distintivo do fascismo? Como explicar o fascínio da violência pela população, ou parte dela?
O fascismo foi violência desde o início e ao longo de sua história. A violência é essencial ao fascismo. Senti que era importante não me limitar a depreciar a violência, mas mostrar como ela era fascinante também para as massas de pequenos burgueses não violentos, trabalhadores honestos, pais de família, ‘pessoas de bem’. A violência tornou-se objeto de desejo político mesmo por quem não a praticava em primeira pessoa, mas a investia de um valor simbólico quase messiânico da força capaz de libertar o mundo e a vida do peso de seus problemas irredutivelmente complexos.
Seus dois primeiros livros têm um grande número de páginas, vários personagens, várias tramas entrelaçadas. Acho que o terceiro segue o mesmo caminho. Qual será o desafio de adaptar uma obra dessa magnitude para uma série de streaming?
O desafio está em andamento. Estamos trabalhando no roteiro há muito tempo (a plataforma da série será a SKY). A série de TV permite mais do que o cinema um enorme arco de história e um vasto coro de personagens. A principal dificuldade consiste em preservar o caráter documental da história e em não gerar empatia com Mussolini nos espectadores.