A tragédia Macbeth, escrita por William Shakespeare (1564-1616) no começo do século 17, é uma das obras mais revisitadas do autor inglês e seus protagonistas, o general do título e sua mulher, Lady Macbeth, desafios para atores ambiciosos. Lady X Macbeth, Outros Detalhes da Peça Escocesa, texto de Marcia Zanelatto, propõe um diálogo contemporâneo da dupla. Guilherme Leme Garcia e Yara de Novaes representam os cobiçados personagens no espetáculo dirigido por Marcio Aurelio e Mara Borba, que está em cartaz até 5 de junho no Teatro Anchieta – Sesc Consolação.
NA INTIMIDADE. No original, Macbeth tem soldados, barões, reis e bruxas. Ao voltar de uma campanha, o capitão ouve de três feiticeiras a profecia de que se tornará rei e, instigado por sua mulher, elimina todos os que ameaçam o seu domínio ao trono da Escócia. A releitura de Marcia, porém, constrói um contraponto intimista focado no casal para tratar de sentimentos como culpa, traição e rivalidade.
Macbeth e Lady estão em seu quarto, onde tudo pode ser dito, para expor fragilidades e frustrações capazes de quebrar os arquétipos masculinos e femininos. “Lady é uma das tantas mulheres fortes sem alternativas, obrigadas a usar a inteligência a favor do marido”, explica a dramaturga. “Hoje, eles não precisariam estabelecer uma relação de afeto e poderiam ser sócios em um negócio.”
A autora começou a formatar a ideia em 2017, incomodada com o impeachment que tirou Dilma Rousseff da Presidência da República no ano anterior. Logo, imaginou quanto o machismo impediu Lady Macbeth de desenvolver o seu talento de estrategista e só lhe restou apoiar-se em uma figura masculina. “Nós, mulheres, nunca conseguimos transformar nossa potência em poder e, então, resolvi pegar Shakespeare pela mão e convidá-lo para um passeio pelo Brasil, falando das máscaras que caíram nos últimos anos”, diz. “Imaginei como seria o relacionamento desse casal nos dias de hoje, atingido por mudanças dos novos tempos.”
Guilherme Leme Garcia, que, nos últimos 15 anos, priorizou a carreira de diretor, enxergou em Lady X Macbeth, Outros Detalhes da Peça Escocesa uma ótima oportunidade de retorno aos palcos.
“Eu me vi diante desse homem que pratica a ação seguindo a mente, o raciocínio de sua mulher e fico satisfeito de abraçar um personagem que me expõe ao risco”, conta ele, que atuou há seis anos na peça Uma Relação Pornográfica. “Quando li o texto, eu enxerguei Marcio Aurelio como o diretor perfeito porque esta dramaturgia radical, quase abstrata, remete a Hamletmachine, espetáculo marcante dele.”
Em 1987, Marcio Aurelio comandou Hamletmachine, peça do alemão Heiner Müller, que se apropriou de outra obra de Shakespeare, Hamlet. O trabalho corporal desenvolvido pela protagonista, a atriz e bailarina Marilena Ansaldi (1934-2021), voltou a inspirar o encenador, que chamou a coreógrafa Mara Borba para auxiliá-lo na concepção da nova montagem.
O que se vê é um exemplo de teatro físico, com dois atores, em figurinos sóbrios, sobre um platô, conferindo contemporaneidade ao conflito. “Marcio reforça para a gente o tempo todo que é um épico, uma tragédia, e essa dramaturgia corporal revigora cada diálogo”, comenta Leme, sobre a direção conjunta.
Yara de Novaes sublinha algumas falas de sua Lady Macbeth, como “eu sou a ideia e ele o gesto” ou “toda potência é minha, todo o poder é dele”. A atriz acredita que se deslocassem a personagem para 2022 a trajetória do casal seria bem diferente.
“Ela tem uma inteligência complementar aos objetivos do marido e negocia como pode para garantir o que julga melhor para a vida deles”, declara. “Discordo totalmente quando falam que a Lady manipula Macbeth, de jeito nenhum, estamos diante de uma tragédia de parceria, tanto que, com a morte dela, ele fica acéfalo.”
A afinação nos bastidores é tanta que Leme e Yara concordam na escolha das interpretações mais marcantes que já viram do casal Macbeth. São as dos atores ingleses Ian McKellen e Judi Dench em uma versão da Royal Shakespeare Company, registrada em 1979 e disponível no YouTube.
“É tudo escuro, filmado no ambiente de um teatro, mas impressiona cada detalhe do trabalho dos dois”, descreve Leme. Yara salienta o fato de Judi Dench compor uma Lady interiorizada, uma mulher comum, sem cair no melodrama ou psicologização. “Os ingleses são insubstituíveis, têm embocadura, pertencimento, é como ator brasileiro com Nelson Rodrigues, a gente conhece bem aquele universo”, compara.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.