SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma criatura marinha encontra relíquias humanas que submergiram acidentalmente. Ela olha para elas, fascinada, e sonha com o dia em que enfim poderá conhecer a superfície apesar dos apelos de sua família para que ela não se aproxime dos temíveis humanos. A premissa pertence a um clássico da Disney, “A Pequena Sereia”, mas também serve para explicar “Luca”, nova animação da Pixar que chega agora ao Disney+.
Aqui, o personagem-título não é um “sereio” ou melhor, um tritão, mas um monstro marinho de 13 anos que habita os mares da costa italiana. Ali perto fica uma cidadezinha humana adornada com estátuas e quadros de monstros marinhos sendo massacrados as lendas dizem, e muitos acreditam, que os seres de fato existem e são uma ameaça.
Mesmo assim, Luca decide explorar a superfície acompanhado de um novo amigo, Alberto, graças à habilidade dessas criaturas de assumirem a aparência de humanos uma vez fora da água. Saem as escamas, barbatanas e caudas e entram em cena braços e pernas que precisam ser domados com certa dificuldade.
Diante desse contexto de intolerância que Luca e Alberto exploram, turbinado pelos sentimentos dos dois de não pertencerem ao mundo marinho e de rejeitarem as expectativas dos pais, surgiram teorias sobre a real essência da amizade dos protagonistas. Na redes sociais, desde o lançamento do trailer do longa, há quem diga que “Luca”, na verdade, é uma história sobre um amor proibido.
A premissa de um menino que precisa esconder quem realmente é para ser aceito foi rapidamente lida como uma alegoria LGBT e até mesmo críticos de cinema estrangeiros, de maneira tão avassaladora que essas suposições acabaram chegando a Enrico Casarosa, diretor da animação.
Ele concorda que a questão identitária é muito importante para a trama, mas ele diz que não, esse não é um romance. A história diz respeito a um período da vida anterior ao amor romântico, mais inocente, uma idade em que tudo é muito intenso.
“Essas teorias mostram o quanto nós queremos representatividade, mas não foi dessa forma que essa história nasceu”, afirma. “O que eu amo nesse filme é o fato de os personagens terem esse sentimento de serem diferentes, oprimidos, o que faz desse um longa sobre encontrar confiança para ser quem você é.”
“Então eu entendo por que as pessoas estão interpretando Luca assim, embora o filme não tenha sido pensado dessa maneira. Mas eu espero que ele dialogue com as várias formas como nós não nos sentimos vistos.”
De fato, é fácil comparar “Luca” à vivência LGBT. Vários diálogos no filme parecem ter sido escritos para fazer um aceno a esse público, em paralelo às inúmeras cobranças de fãs da Disney por representatividade nas telas.
“Algumas pessoas jamais irão aceitar, mas algumas vão”, “minha família ia me mandar para um lugar horrível, longe de tudo o que eu amo”, “se alguém fosse um monstro marinho, eu duvido que sua escola o aceitaria”. Essas são algumas das falas que devem engrossar as teorias online depois que o longa chegar ao público neste Mês do Orgulho LGBT.
“Luca” ainda gerou comparações com um recente clássico do cinema queer, “Me Chame pelo Seu Nome”, por causa da ambientação na Itália. Conhecido pelas letras românticas, o cancioneiro italiano, aliás, é um ingrediente fundamental da jornada dos garotos monstruosos. Estão na trilha músicas de Gianni Morandi, Rita Pavone, Mina Mazzini e até Giacomo Puccini.
Fora do mundo anglófono e da Europa pasteurizada de outrora, “Luca” faz parte de um esforço recente da Disney de diversificar suas histórias. O italianismo dos personagens transborda, de forma autêntica, divertida e sem comedimento. Eles têm sotaques carregados e mãos inquietas, enquanto o cenário é de uma cor viva, com arquitetura que remete à cidade de Gênova. “Santo Pecorino” e “Santa Mozzarella” estão no menu de expressões cunhadas por uma das personagens a partir de queijos locais.
“Isso sempre foi muito importante. Parte disso foi solucionado usando minhas memórias, e quanto mais detalhes eu conseguia trazer para a história, mais autêntica ela ficava”, diz Casarosa.
Para fugir de estereótipos e alcançar o clima mediterrâneo que queria, ele recorreu não apenas a seu passado genovês, mas também a pequenos conselhos da Pixar formados por italianos e seus descendentes, a uma dramaturga nascida no país e à divisão da Disney na Itália, com a qual organizou “um simpósio de gesticulação pelo Zoom para saber como os personagens deveriam dizer certas coisas”.
Casarosa é parte de uma turma da Pixar que por anos trabalhou em cargos menores no estúdio e, agora, é alçada a postos de maior influência. Membro do departamento de arte de filmes como “Ratatouille” e “Viva: A Vida é uma Festa”, ele assume seu segundo trabalho como diretor o primeiro foi no curta “A Lua”, também da Pixar, de 2011.
Teorias à parte, “Luca” continua sendo, ao menos oficialmente, uma ode à Itália e também ao poder da amizade. É uma história sobre a inocência da infância, embrulhada num berrante vermelho e verde e com muitas menções a diferentes tipos de macarrão.
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LUCA
Quando Estreia nesta sexta (18), no Disney+
Produção EUA, 2021
Direção Enrico Casarosa