Autora de vasta obra, Lygia Fagundes Telles, que morreu neste domingo, 3, aos 98 anos, tinha especial predileção pelo romance As Meninas, publicado em 1973 e que ela sempre considerou uma obra moderna.
Trata-se da história de três universitárias, que se revezam como narradoras da obra durante uma greve estudantil: Lorena, fruto de uma educação esmerada, vive remoendo o passado; Lia, conhecida como Lião, ativista de esquerda dedicada à ação política clandestina; e Ana Clara, estudante de psicologia com sérios problemas existenciais. Aparentemente pouco movimentado, o romance concentra-se no retrato interior das três protagonistas e, por extensão, da moderna sociedade brasileira e todos os seus conflitos.
Lygia conta que se inspirou nas conversas dos amigos do filho Goffredo Telles Neto, então um adolescente. Atenta, incorporou desde detalhes do vocabulário dos jovens, que tratavam de drogas e sexo até a preocupação com as ações políticas radicais em uma época marcada pela repressão militar. A atitude mais ousada, porém, foi incluir na história a descrição de uma tortura (leia no trecho abaixo). Na época (1971), a escritora recebeu um panfleto que detalhava a violência física sofrida por um preso político.
Impressionada, decidiu aproveitar o relato no romance que escrevia. Apesar do risco da censura, foi incentivada pelo seu marido, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes – a desculpa seria que os personagens ganhavam liberdade no ato da escrita, o que impedia o controle de suas ações.
A prosa refinada e o tom intimista de As Meninas, porém, despontaram como sua primeira e melhor defesa, pois o censor encarregado de analisar o romance, provavelmente um homem pouco afeito a preciosismos literários, liberou-o depois de ler poucas páginas, aborrecido com o que julgou falta de ação.
“Ele deve ter se aborrecido com o livro e nem chegou ao momento da tortura”, contou ela ao Estadão, em 2003, aos risos.
“Comemoramos, Paulo Emílio e eu, com uma boa taça de vinho.”
Trecho de As Meninas:
“Maurício aperta os dentes que se quebram. Não quer gritar e então aperta os dentes quando o bastão elétrico afunda lá no fundo. No desenho animado, o gato leva um trompaço e dentes e ossos se trincam. Mas na cena seguinte já se colam e o gato volta inteiro. Seria bom se fosse como nos desenhos, Silvinha da Flauta. Gigi. Japona. E você, Maurício? Quando o bastão entrar mais fundo, desmaia. Desmaia depressa, morra. Devíamos morrer, Miguel. Em sinal de protesto devíamos todos simplesmente morrer. “Morreríamos se adiantasse”, você disse. Lembra? Eu sei, ninguém daria a mínima. Arrancaríamos o coração do peito, olha aqui meu sangue, olha aqui meu coração! Mas tem um tipo ao lado engraxando os sapatos, que cor de graxa o cavalheiro prefere?”