Morreu, aos 83 anos, Geraldo Sarno, diretor que deixa marcas importantes na história do cinema brasileiro. Tais como Viramundo (1965), Iaô (1976), Coronel Delmiro Gouveia (1977) e Sertânia (2021), entre outras obras. Sarno teve intensa produção, mas estes são os marcos fundamentais, que definem uma trajetória no momento em que ela se encerra.
Viramundo talvez seja a mais lembrada dessas obras, em especial pelos historiadores do cinema brasileiro. Esse média-metragem (cerca de 30 minutos) fala da migração interna no Brasil, em especial a de nordestinos rumo ao Sudeste. Tema recorrente nas artes engajadas do País, preocupadas em retratar a desigualdade social. Basta lembrar do quadro de Cândido Portinari (Os Retirantes) e obras como Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. No mitológico Show Opinião (1964), durante a interpretação de Carcará, a cantora (Nara Leão, depois Maria Bethânia) desfilava os números de nordestinos de cada Estado da região obrigados a deixar suas terras por causa da seca e da fome.
Sarno entra nessa vertente nesse média que faz parte do filme Brasil Verdade, coordenado por Thomaz Farkas. Era uma quadra em que se acreditava na arte como transformadora dos desajustes sociais num país do Terceiro Mundo.
Em Viramundo, Sarno faz o que o depois se convencionou chamar de “documentário sociológico”. Registra, em cenas recorrentes na estação de trem, a chegada de migrantes nordestinos a São Paulo. Entrevista-os e uma voz off comenta e interpreta os fatos. O filme de Sarno foi utilizado como exemplo de modelo sociológico na obra seminal de Jean-Claude Bernardet Cineastas e Imagens do Povo. Os sofrimentos, a seca, a viagem, as dificuldades de adaptação na cidade grande, a busca de trabalho – tudo isso aparece. E a voz do locutor comenta e interpreta. É a “voz do dono”, conforme a ironia de Bernardet. A voz do intelectual que dá sentido àquilo que o povo fala.
O filme traz também o fator religioso como preponderante no que é então considerado como um fator de alienação popular. Cerca de um terço do filme é consagrado à religião vista como “ópio do povo”, segundo a clássica designação marxista. Hoje quase não se usa mais a narração do locutor em documentários, pelo menos nos mais empenhados artisticamente. Prefere-se outros meios. Naquele contexto, no entanto, Viramundo foi fundamental. Dessa forma, tornou-se clássico.
Curiosamente, Sarno, baiano de nascimento, volta à questão religiosa em Iaô, desta vez dedicando-se aos cultos afro-brasileiros. A visão, agora, torna-se oposta à de Viramundo. O próprio Bernardet registra que, o que no primeiro filme era visto como alienação, no segundo vira resistência cultural. Separados por cerca de dez anos de distância, Viramundo e Iaô devem ser vistos como um par, em que um dialoga com o outro.
Como obra de ficção de Sarno, deve-se destacar o longa-metragem Coronel Delmiro Gouveia (1979). Interpretado por Rubem De Falco, Gouveia é o empresário de uma fábrica de linhas que enfrenta a indústria estrangeira. Nessa briga desproporcional, o brasileiro acaba assassinado. O formato é o de thriller político e teve boa acolhida nos cinemas (Em seu verbete sobre Sarno na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, Fernão Pessoa Ramos registra a estreia de Delmiro Gouveia em oito salas de São Paulo e cinco do Rio).
O próprio Fernão lembra que o filme foi comparado ao grande cinema político italiano da época, em particular a O Caso Mattei, um clássico do gênero assinado por um mestre como Francesco Rosi, autor também de Bandido Giuliano. No caso brasileiro, o exemplo de Gouveia era exemplar das supostas ligações entre o empresariado nacionalista e os interesses do povo, tese abraçada pelo Partido Comunista e de pouca comprovação histórica. Essa aliança não podia se cumprir em face dos interesses estrangeiros, muito mais poderosos e inescrupuloso em seus meios de ação.
O filme é interessante, porém, de acordo com Jean-Claude Bernardet, foi feito fora de época. Fosse lançado dez anos antes, quando essas ideias ainda se discutiam, teria maior eficácia, tanto artística quanto política.
Bastante ativo no campo televisivo (ver sua série A Linguagem do Cinema), Sarno ressurgia no cinema de tempos em tempos. Em 2008 vai ao Festival de Brasília com o documentário Tudo Isso me Parece um Sonho, resgatando a figura histórica do general pernambucano Abreu e Lima, que participou das lutas de libertação da Colômbia, Venezuela e Peru no século 19.
Em 2010 esteve no Festival de Gramado com um filme um tanto estranho chamado O Último Romance de Balzac, falando de um livro do escritor francês da Comédia Humana que teria sido psicografado por um médium. Claramente, pegava carona no veio espírita que rendeu sucessos ao cinema brasileiro com filmes sobre Bezerra de Menezes e Chico Xavier.
Mas a maior surpresa de Sarno estava reservada para Sertânia, que viria a ser seu último filme e testamento. Com registro visual em preto-e-branco, e linguagem alucinatória, a obra, lançada em 2021, recria a saga dos desvalidos do País, da Guerra de Canudos aos nossos dias. O recurso ficcional é o de um cangaceiro ferido de morte, em seu delírio de agonizante.
Sertânia foi considerado pelos críticos como um dos melhores do cinema nacional no ano passado. Quando o fez, Sarno já passava dos 80 anos e filmava com alma jovem. Sem perder aquela que foi sua característica principal ao longo da vida – a pegada documental, mesmo na ficção, e o sentido político da obra, com opção clara pelos desvalidos de uma sociedade injusta. Deixa um belo e grande legado.