No mês em que completa 80 anos (no dia 20), a artista Anna Maria Maiolino ganha uma retrospectiva que acompanha sua produção desde 1967 aos dias atuais. Aberta no último sábado, no Instituto Tomie Ohtake, a mostra, chamada Psssiiiiuuu…, reúne 300 obras, entre elas peças icônicas reproduzidas com frequência em livros de história da arte brasileira. Nascida em Scalea, comuna italiana da Calábria com pouco mais de 20 quilômetros quadrados, Anna Maria Maiolino é hoje um dos grandes nomes da arte contemporânea do Brasil, que escolheu para morar (em 1960) após passar pelos Estados Unidos ,Venezuela e Argentina, entre outros países.
Paulo Miyada, curador da exposição, que ocupa as três salas superiores do instituto, conta que foi aqui, em 1961, ao frequentar cursos e ateliês da Escola Nacional de Belas Artes do Rio, que sua obra começou a tomar forma. “Ela frequentava o grupo integrado por artistas da Nova Figuração, como Antonio Dias, Roberto Magalhães e Rubens Gerchman (com quem foi casada), participando de mostras históricas como Nova Objetividade Brasileira, em 1967”, lembra Miyada. Trabalhos dessa época, como a tela O Herói (1966) ocupam a segunda sala do instituto, onde estão reunidos trabalhos críticos ao regime ditatorial brasileiro. Na mencionada pintura, um esqueleto vestido com uniforme militar encara o espectador de modo ameaçador.
A biografia de Anna Maria Maiolino é cheia de percalços que justificam esse engajamento. Na mesma sala, a artista apresenta uma instalação concebida em 1992 e só realizada agora, Las Locas, com eram conhecidas as mães da Plaza de Mayo, em Buenos Aires, que tiveram seus filhos mortos pela ditadura militar que governou a Argentina entre 1976 e 1983. É uma obra de grande impacto e fruto de real identificação de Maiolino com o sofrimento dessas mulheres – a experiência do exílio e da perseguição política a levou a explorar em seu trabalho temas como pertencimento, o papel da mulher na sociedade e, principalmente, a questão da alteridade.
Dito assim, pode parecer que a dela é uma obra de caráter panfletário. Não é. Como já observou a historiadora de arte Maria de Fátima Lambert, os desenhos e as instalações de Anna Maria Maiolino não são unicamente obras visuais. São peças para serem “lidas” – e, não por acaso, muitos desenhos da artista remetem ao universo poético (e aos traços) do belga Henry Michaux (1899-1984), que viveu no Brasil por volta de 1939.
Prova disso é a série Propícios, assinada pela artista em 2011. Michaux criou um personagem literário chamado Plume (pena ou caneta), que migrava de um estado a outro, perdendo sua forma e incorporando outras, mas nunca sua essência. Maiolino é como Plume: indestrutível. E ela sofreu um bocado: nasceu numa família pobre de dez filhos, viveu no exílio e sofreu a incompreensão de críticos até o começo dos anos 1990.
O ponto de virada, segundo o curador Paulo Miyada, foi sua participação numa mostra organizada em 1992 pela crítica belga Catherine de Zegher, America – Bride of the Sun, montada no Royal Museum of Fine Arts de Antuérpia. De lá para cá participou de exposições internacionais como a Documenta de Kassel e pelo menos sete bienais de São Paulo.
Foi mais ou menos pela época da exposição belga que Maiolino incorporou o vídeo em sua obra, após suas experiências em super 8 nos anos 1970 – e há na mostra um curta em que alterna passos de um gorila na jaula aos de soldados marchando. Paralelamente a comentários cheios de humor estão peças delicadas que sintetizam a trajetória da artista. O curador destaca o caráter “espiralar” de sua obra, apontando, na primeira sala, para uma xilogravura de 1967 com o nome-palíndromo da artista. Nela, duas bocas pronunciam Anna não como exercício narcísico, mas espelhando a “vida-obra” de Maiolino, que surge em diferentes papéis sociais. Exemplar, nesse sentido, é o trabalho Por um Fio da série Fotopoemações, de 1976, onde aparece ao lado da mãe e da filha mastigando uma linha (genealógica).
Mas é na terceira sala (a mais bela da mostra) que Anna Maria Maiolino apresenta a síntese dessa vida-obra. Lá está o resultado de suas experiências de moldar em esculturas recentes como a da série Hilomorfos (2016), que parecem desafiar a gravidade e, a exemplo das esculturas de Giacometti, evocam seres à beira de uma metamorfose, de um colapso existencial. Ou as quatro peças da série In-Rosso (2018) que o curador, num feliz lance associativo, instalou ao lado de obras em vidro soprado de formas adaptáveis ao suporte de metal. Um epílogo simplesmente magistral.