‘Só o que é bom dura tempo suficiente pra se tornar inesquecível’, já dizia Chorão, líder do Charlie Brown Jr., na música Vícios e Virtudes. A banda santista marcou tanto o rock nacional que figura hoje entre as 200 mais tocadas no Spotify. O grupo entrou no ranking semanal da plataforma em outubro de 2021 e, nesta semana, está na 34ª posição.
Uma das explicações para essa presença pode ser o lançamento do disco ao vivo Chegou Quem Faltava, em julho do ano passado. Outra razão é a força das músicas entre os fãs, que seguem escutando as mantidas no catálogo da banda. ‘As músicas são eternas, estão incrustadas na sociedade’, avalia o cantor DZ6, fã da banda, da qual tem um cover. ‘É reflexo da capacidade de Chorão de falar com a alma, com o coração, de expor o personagem dele de um modo que algumas pessoas não conseguem mais’, acrescenta DZ6.
A Charlie Brown Jr. não é a única banda que chama a atenção por estar nos charts da plataforma de streaming mesmo depois de desativada. Legião Urbana (103º), Linkin Park (123º), Queen (148º) e O Rappa (179º) são grupos e artistas que, mesmo após o fim de suas bandas, continuam encantando fãs pelo Brasil a ponto de estarem na lista de 200 mais ouvidas do País.
Os dados não são restritos ao Brasil. Um estudo recente sobre a indústria musical nos Estados Unidos verificou que músicas de catálogo, que são aquelas com pelo menos 18 meses de lançamento, representam 72,4% do mercado, em comparação com 27,6% de novidades (as lançadas de 18 meses atrás para cá).
O relatório, feito pelo monitor de mercado Luminate, analisa uma métrica chamada consumo total de álbuns, que leva em consideração serviços de streaming, downloads e vendas de música digital e física. Além disso, considera também artistas que ainda estão na ativa. A interpretação do levantamento sugere que o interesse do público por músicas mais antigas parece predominar em relação ao que está sendo lançado atualmente.
MENOS ANTIGAS
Apesar da alta porcentagem, é importante pontuar que essas músicas antigas que estão sendo mais ouvidas não são exatamente tão antigas assim. Mais de um terço desse consumo é de música lançada entre 2017 e 2019, segundo o estudo. ‘Indica, de alguma forma, que existe um interesse do público por música de catálogo’, explica o compositor e produtor musical João Marcello Bôscoli.
Os números falam muito sobre o comportamento – principalmente o das plataformas de streaming, pois analisam o que está sendo ouvido quase em tempo real pelas pessoas. No entanto, a pesquisadora Dani Ribas, doutora em sociologia pela Unicamp, especialista em consumo musical e comportamento de público e diretora da Sonar Cultural Consultoria, explica que muitas variáveis são necessárias para entender a tendência. ‘Não é um cálculo racional de custo-benefício quando a gente escolhe uma música para ouvir’, pontua.
No caso dos serviços de streaming, isso complica mais ainda, porque há fatores que não são passíveis de controle, como a existência de um algoritmo que calcula o que você pode gostar de ouvir a partir do que tem ouvido, pesquisado ou até partindo do que seus amigos estão escutando. ‘Pensando que todas as plataformas digitais disputam a nossa atenção, o modelo de negócio delas é remunerado por publicidade. Então, nossa atenção é a moeda corrente’, diz a pesquisadora. ‘Nesse sentido, a música é uma commodity, vendida em quantidades enormes’, acrescenta.
Enxergar a música como mercadoria não é novidade. Historicamente, artistas emergiram e desapareceram explodindo em vendas, tocando em rádios, indo a programas de auditório, lançando singles, EPs, sendo pupilos de gravadoras. Com o streaming, mudaram apenas a forma de distribuição e, claro, o acesso à difusão das obras.
EM CASA
‘Artistas começaram a produzir mais em casa, individualmente, e sobem suas próprias músicas. Então, temos uma explosão de artistas de pequeno ou zero público’, alerta Dani. ‘Até os anos 1980 tínhamos poucos artistas vendendo muito e hoje em dia é o contrário’, pontua.
A pulverização dos artistas e de seu trabalho facilita, de alguma forma, que obras de catálogo agreguem mais que lançamentos – já que, para muitas delas, o que vale é a memória afetiva. E se no passado havia menos artistas alcançando o grande público, ainda é menor a quantidade de músicas que foram capazes de permanecer na memória dos ouvintes. ‘Eu credito isso ao valor artístico deles. Cada década tem artistas que se adequam a esse período e a espaços de tempo maiores’, opina Bôscoli, e (à capacidade de) fazer uma leitura de determinada época e de essa leitura durar décadas. São questões que atravessam gerações, não são datadas. Pelo contrário, se tornam clássicos’, continua o compositor.
Isso pode ajudar a explicar a presença das chamadas ‘músicas de catálogo’ de grupos como Legião Urbana e Charlie Brown Jr., que conseguiram se conectar com suas gerações criando letras que são imortais. Afinal de contas, quem nunca cantou o refrão de Pais e Filhos?
EMPURRÃO
E são essas obras que acabam indo e voltando também como apostas em produções audiovisuais, como os exemplos mais recentes. A música Running Up That Hill, de Kate Bush, liderou paradas do Reino Unido após aparecer em Stranger Things. O mesmo caminho de Master of Puppets, do Metallica, que também teve um boom de streams após ser usada como trilha da série.
A fórmula para não cair no esquecimento e estar sempre nos charts não existe. ‘Determinadas épocas deixam mais contribuição que outras. Eu já achei que havia pessoas que iam permanecer e que não permaneceram’, admite Bôscoli. ‘Será que daqui a 40 anos vai ter uma série como Stranger Things tocando Drake?’, indaga o compositor. Por ora, não se sabe. A única certeza que temos é que o que já foi eternizado, eternizado está. Só nos resta esperar alguns anos para saber se o catálogo de nosso artista preferido será esquecido ou vai figurar nas listas de mais ouvidas do futuro.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.