SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre distâncias passageiras e perdas irreparáveis, a Covid-19 distribuiu pelo mundo uma longa expectativa de reencontros que tem se dissolvido aos poucos nos últimos meses graças à vacinação, ainda que no Brasil isso avance lentamente. Mas nem todas as tragédias podem ser reparadas num tempo histórico tão curto. “A Espera” é um lembrete disso.
Segunda graphic novel da sul-coreana Keum Suk Gendry-Kim a chegar ao Brasil, a obra se debruça sobre a situação de famílias separadas pela divisão do país depois da Guerra da Coreia. Norte e Sul selaram um armistício em 1953, mas as nações continuam em estado de guerra -e as comunicações civis, proibidas.
A migração forçada pelos conflitos afastou incontáveis famílias que, só muitos anos depois, com o auxílio da Cruz Vermelha e dos tímidos contatos entre os territórios separados pelo paralelo 38, puderam buscar um breve reencontro com seus parentes.
Gwija, a idosa protagonista da HQ, mãe da narradora -um alter ego de Gendry-Kim-, poderia ser uma das mais de 132 mil pessoas que registraram pedidos para reencontrar seus parentes, e que só podem conseguir isso em breves reuniões promovidas num hotel perto da fronteira. Na verdade, Gwija encarna histórias de várias delas.
“Eu parti de depoimentos de várias pessoas e decidi reunir tudo numa figura. Os fatos da história são reais, mesmo que eles não tenham acontecido com um mesmo indivíduo”, conta a quadrinista, por videoconferência traduzida por Yun Jung Im, professora de língua coreana da Universidade de São Paulo e responsável por verter a HQ para o português.
Em “Grama”, premiada graphic novel que marcou a estreia da autora no Brasil pela editora Pipoca e Nanquim, a quadrinista tratou de outra ferida histórica do seu país -a das “mulheres de conforto”, meninas escravizadas pelo Exército imperial japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Esse livro, porém, foi todo baseado numa série de entrevistas com Ok-sun Lee, uma dessas vítimas, predominando um tom documental por suas quase 500 páginas.
A narrativa do novo quadrinho é parecida, alternando entre visões do presente e reconstituições do passado das protagonistas, mas nomear os depoentes reais que embasam “A Espera” seria um desafio adicional.
“Se eu adotasse o procedimento, teria que trazer toda a história da minha própria família, porque a minha mãe também está entre quem sofreu essa separações”, conta.
Gendry-Kim soube da história pessoal em 1997, quando sua mãe foi viver com ela por um período em Paris, onde estudava artes plásticas. Ela gravou o depoimento da mãe na época, mas ainda não tinha a intenção de transformar aquilo numa obra, nem mesmo tinha descoberto o poder das histórias em quadrinhos.
“Você só precisa de um lápis e de uma folha de papel e pode falar sobre tudo o que quiser”, diz a autora. A força dessa simplicidade aparece em seus desenhos, feitos de maneira tradicional, com pincel e nanquim, mas que demonstram sua habilidade de alternar entre traços rápidos, expressões dramáticas e painéis sutis em que a natureza fala tudo.
Para ressaltar essa afinidade, basta lembrar o próprio nome do trabalho, “Grama” -representando a persistência das vítimas em renascer apesar dos abusos da guerra-, ou a belíssima página de “A Espera” em que as duas idosas separadas de suas famílias têm suas cabeças interligadas pela memória de uma paisagem rural.
É um trabalho artesanal que, frente ao fenômeno dos quadrinhos digitais sul-coreanos, os webtoons, faz de Gendry-Kim uma guardiã das publicações em papel. Suas graphic novels só tiveram boas vendas no país depois do reconhecimento de prêmios internacionais.
Mesmo reconhecendo a influência de “Maus”, clássica HQ de Art Spiegelman em que o autor remonta o período do Holocausto por meio do relato de seu pai, Gendry-Kim foi cautelosa para evitar incômodos entre parentes e outras pessoas que contribuíram com suas histórias.
Ao mesmo tempo, essa postura trouxe uma liberdade criativa em que a ficção preenche as lacunas dos relatos e potencializa “A Espera” como um drama histórico em conversa com o contemporâneo.
Gwija se perde do filho e do marido durante a fuga para o sul, tendo que enfrentar o restante do trajeto sozinha com sua bebê. Entendendo a separação como definitiva, com o passar dos anos ela constitui uma nova família, mas tanto ela como o marido concordam em se separar quando puderem ficar com seus entes queridos.
A filha da personagem, uma romancista atolada no dia a dia da profissão, acaba herdando a promessa de cumprir essa missão para a mãe, mas não depende dela. Os milhares de pessoas que se inscrevem há mais de 30 anos para esses reencontros são escolhidas em sorteios realizados pelo governo, que dá preferência a pessoas entre 70 e 90 anos de idade.
Tendo seu livro publicado no final do ano passado na Coreia do Sul, Gendry-Kim conta que fez o quadrinho “esperando a pandemia acabar”, então não é à toa que a história se comunique tanto com os nossos tempos -mas não apenas nesse sentido.
“Eu também jogo muitas questões paralelas, como o custo da moradia no país, o preconceito com mulheres que preferem ficar solteiras, e mesmo a relação das mães com filhos de diferentes sexos”, ressalta ela, sobre mudanças sociais que aguarda na Coreia do Sul.
“Mesmo a espera [dos familiares] não termina com o encontro, pois ele é muito breve. Ele continua indeterminadamente, até que haja a reunificação do país. Eu queria lançar essa pergunta para a minha geração. Nós queremos a reunificação? Não vivemos a guerra e hoje enfrentamos questões que não tem continuidade com o conflito. Então, essa realidade corre perigo de cair no esquecimento.”
Desde 1985, foram realizadas pouco mais de 20 reuniões, das quais participaram mais de 20 mil pessoas. Mas, em 2018, quando foi realizada a última delas, dos mais de 132 mil inscritos, só 56 mil continuavam vivos e aguardando a sua vez.
“Só uma minoria dessas pessoas vai se encontrar. Em algum tempo, se quisermos a reunificação do país, isso aconteceria não tanto pelas razões humanitárias, mas por uma questão econômica”, conclui Gemdry-Kim. “Meu livro é uma homenagem para a minha mãe e para todas as pessoas que hoje sofrem, devido a guerras no mundo todo, a dor de não ter para onde voltar.”
A ESPERA
Preço R$ 69,90 (252 págs.)
Autor Keum Suk Gendry-Kim
Editora Pipoca e Nanquim
Tradução Yun Jung Im