RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O advogado e escritor José Roberto de Castro Neves, de 50 anos, não sabe precisar o momento em que Shakespeare entrou em sua vida. Mas se recorda com precisão de como o bardo encantou seus alunos.
Professor de direito civil há 25 anos, com passagens por instituições como a Uerj e atualmente a PUC-Rio, Neves ilustrava suas aulas com as cenas de julgamento das tragédias, dramas históricos e comédias shakespearianas. Não sabe qual seria a opinião do dramaturgo –bastante crítico aos advogados– a respeito. Mas os alunos ficavam envolvidos –e queriam saber mais das peças.
Por esse motivo, lançou em 2013 “Medida por Medida: o Direito em Shakespeare”, que analisa os aspectos jurídicos da obra do autor. Agora, lança um livro que parte de uma tese inusitada –e é um convite a um mergulho sonoro na obra: “Shakespeare e os Beatles: o Caminho do Gênio”, em que traça paralelos entre as trajetórias artísticas do rapaz que saiu de Stratford-upon-Avon e os garotos de Liverpool.
Ambos os livros do autor partem de uma vasta bibliografia sobre o dramaturgo. Em sua casa no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, Neves mantém uma biblioteca de 20 mil títulos, entre os quais se destacam 5.000 obras de Shakespeare –ou de autores que se dedicaram às suas 37 ou 40 peças (há controvérsias quanto à quantidade de títulos de sua autoria).
Entre os livros, se destacam uma coletânea de 1790, de suas obras organizada pelo editor irlandês Edmond Malone, um dos pioneiros na catalogação das obras shakespearianas. Há ainda traduções para o francês feitas por François Victor Hugo, filho do autor de “Os Miseráveis”, datadas de 1861.
Victor Hugo dividiu as obras de Shakespeare em tomos temáticos. Na coleção de Neves, por exemplo, as tragédias Coriolano e Rei Lear compõem o “Tomo IX”, dedicado à família.
O escritor adquiriu parte da biblioteca da crítica e tradutora Barbara Heliodora, morta em 2015, e maior autoridade brasileira no assunto.
Entre as raridades da coleção de Heliodora está uma edição da “Imperial Shakespeare”, de Charles Knight, lançadas entre 1873 e 1876.
A tradutora dedicou a Shakespeare a mesma paixão que este, segundo ela, dedicou ao ser humano, e costumava fazer breves anotações e grifos em seus livros. “Tem um momento do Hamlet em que a rainha Gertrudes fala para Polônio: ‘more matter with less art’ –ou ‘mais verdade e menos arte’, na tradução de Anna Amélia. Ela vai e sublinha”, conta Neves. O autor acredita que Heliodora quisesse dizer o mesmo a respeito de outras obras.
Outro título raro da coleção é uma tradução de “Júlio César” autografada por seu tradutor –ninguém mais que Carlos Lacerda, cuja vida política esteve marcada pela traição e a oratória. “Logo ele que foi um grande orador, uma peça de oratória política, uma lição de política.”
A assinatura é de 26 de setembro de 1966, quando Lacerda havia sido traído pelos militares que ajudou a colocar no poder em 1964 e se dedicava à vida editorial (a Nova Fronteira fora fundada por ele em 1965).
O garoto de Stratford e os garotos de Liverpool se encontraram em Neves a partir de uma controvérsia histórica que houve em torno da obra de Shakespeare: a questão da autoria.
“O Freud era um dos grandes defensores da ideia de que Shakespeare não existiu. O argumento que eles tinham é que o Shakespeare não tinha ido para a universidade [ao contrário da expressiva maioria dos dramaturgos elisabetanos, como Christopher Marlowe].”
Diante disso, Neves começou a conjeturar se a mesma dúvida não seria lançada um dia com relação às canções dos Beatles.
“Quatro rapazes, de Liverpool, suburbanos, nenhum deles foi pra universidade, nenhum estudou música, será que não foi alguém, um músico da EMI [que fez as músicas e a gravadora atribuiu a eles], para fazer um jogo de estratégia?”, brinca. “A partir dessa ideia, eu comecei a ver uma série de coisas muito semelhantes” no dramaturgo e nos quatro compositores.
A obra intercala diferentes momentos da vida de ambos: a fase de aprendizado; a juventude; a construção da identidade; a melancolia; a maturidade e a despedida.
“‘Romeu e Julieta’ é um manual da adolescência. Droga, amor proibido, importância da aparência”, afirma Neves. Já no caso dos Beatles, músicas como “A Hard Day’s Night” embalam esse momento.
A identidade viria na fase em que o artista decide dar um salto criativo e sua obra se transforma. “Os Beatles fazem isso com ‘Help’ e ‘Yesterday’, uma balada linda para um grupo de rock. A virada de Shakespeare é com Júlio César.”
Neste momento, ele deixa os dramas históricos e comédias mais leves para centrar-se nas obras da fase melancólica, como “Hamlet”, e da maturidade, como “Rei Lear”. No caso dos Beatles essas mesas fases são representadas por álbuns como “Rubber Soul” e “White Album”.
O que diferencia Shakespeare e os Beatles de outros artistas, além do grande valor das obras, é saber a hora de sair de cena, segundo Neves.
“A marca do artista extraordinário é a capacidade de entender que o tempo dele acabou. O Shakespeare e os Beatles tiveram essa inteligência. O Shakespeare faz ‘A Tempestade’ e volta pra Stratford. Os Beatles também. A última coisa eles gravam é ‘The End’.”