Vai ficando mais distante e, talvez por isso, mais evidente o quanto aqueles anos ilhados entre o início e o fim da década de 1980 significaram para quem ouviu música no Brasil. Pois uma outra versão do rock em português que havia sido inaugurado mais de 20 anos antes, higienizado, apolítico e irradiado pelo Programa Jovem Guarda enquanto tendas verde-oliva eram instaladas em Brasília, se reapropriaria dos espaços de mainstream com outro apetite. Um Brasil que se despedia da ditadura, mas não de suas contradições oferecia desta vez um material visivelmente mais contraditório e complexo – e tudo parecia tão ingênuo lá atrás – tecido nas incompatibilidades. Havia raiva e esperança, palavrões e poesia, midiatismo e reclusão, RPM e Lobão, e tudo democraticamente chamado de “rock nacional”.
O talvez maior retrato já feito dessa época será um evento chamado Rock Brasil 40 Anos, que já passou pelo Rio de Janeiro e por Belo Horizonte e que chega agora a São Paulo. Com edições intermitentes, entre 27 de março e 21 de abril, o festival terá como base principal o Memorial da América Latina, onde o palco armado vai receber, para uma média de público diário de 15 mil pessoas, bandas como Paralamas do Sucesso, Plebe Rude, Capital Inicial, Biquíni Cavadão, Leoni, Leo Jaime, Barão Vermelho, Ultraje a Rigor, Titãs, Ira, Camisa de Vênus, Paulo Ricardo, Humberto Gessinger, Blitz, Frejat, Nando Reis, Arnaldo Antunes e Marina Lima. As vendas de ingressos, com preços entre R$ 80 e R$ 400, são feitas pelo site ingressocerto.com.br.
O produtor Peck Mecenas, idealizador do projeto, teve sua vida adulta inaugurada junto com o rock nacional. Sua história é curiosa. Aos 18 anos, ele era produtor de estrada da banda Barão Vermelho, com quem trabalharia por 18 anos e, logo depois, se tornou produtor executivo do Circo Voador, no Rio de Janeiro, o “ninho da cobra” do que seria o rock brasileiro. Muitos consideram que a inauguração de tudo se deu no Circo, ainda nas areias do Arpoador, no Rio, no verão de 1982. Assim, ainda moleque, veria os primeiros passos de Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Blitz, Camisa de Vênus e muitas outras bandas. “Aquilo foi o divisor entre a ditadura e a democracia. Que País É Esse? (da Legião) e Brasil (de Cazuza) poderiam ser os hinos nacionais.”
CINEMA
Há uma produção cinematográfica diretamente ligada às bandas dos anos 1980, mas pouco avaliada. Ela estará em uma longa mostra que será realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, como parte do projeto, com entrada franca.
Alguns dos filmes são Barão Vermelho – Por Que a Gente É Assim?, de 2007, com direção de Mini Kerti; Faroeste Caboclo, de 2013, dirigido por René Sampaio, baseado na música de mesmo nome da Legião Urbana; Blitz, O Filme, de 2019, de Paulo Fontenelle; Titãs: A Vida Até Parece Uma Festa, de 2009, com direção de Oscar Rodrigues Alves e Branco Mello; Somos Tão Jovens, de 2013, uma cinebiografia de Renato Russo, com direção de Antonio Carlos da Fontoura; e Cazuza – O Tempo Não Para, de 2004, com a história de Cazuza, dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho.
Outra frente será preenchida pelos musicais, uma linguagem relativamente nova em sua abordagem dos anos 1980. O mesmo CCBB terá uma série deles com produções como Cazas de Cazuza, de Rodrigo Pitta; Cássia Eller – O Musical, Renato Russo – O Musical e Cabeça, Um Documentário Cênico. Uma palestra que vale a pena conferir será ministrada pelo jornalista e crítico musical Nelson Motta. Ela será realizada nos dias 26 de março e 2, 9 e 16 de abril.
REVIVAL
Os primeiros shows do Memorial começam às 15h deste domingo. Uma sequência de nomes poderosos será formada por Paralamas do Sucesso, Plebe Rude, Capital Inicial e Biquíni Cavadão. Bi Ribeiro, baixista dos Paralamas do Sucesso, conta que não se lembra de ter visto evento sobre o rock dos anos 1980 nas mesmas dimensões. “Das maiores bandas, só faltou a Legião. Acho que é a maior celebração já feita sobre essa época.”
Bi conta que o distanciamento pode trazer novas reflexões. Seu grupo, os Paralamas, talvez seja o de linguagem mais descolada do que é entendido como um movimento. Se não houvesse os anos 80, certamente haveria Paralamas com o mesmo sucesso. “Havia muita competição. Uma competição informal, claro, cada banda queria fazer um disco melhor do que a outra. Estávamos todos no mesmo páreo. Mas hoje o que rola é muita amizade.” E qual show Bi Ribeiro gostaria de ver? Alguns, ele diz. “O Ira! queria muito ver um show deles.” Mas ele dá uma dica quase improvável. “E cara, você precisa ver o show do Biquíni Cavadão. Os caras fazem uma p… apresentação.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.