SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando o mundo comemorava os 450 anos do nascimento de William Shakespeare, em 2014, a soprano brasileira Gabriella Di Laccio vivia em Londres há mais de uma década e pesquisava músicas compostas a partir de textos do escritor inglês.
Entre o material levantado, estavam dez ciclos de canções escritas por mulheres –nenhum dos quais a própria soprano, acostumada a explorar o repertório, conhecia. A pulga já estava atrás da orelha quando, num sebo, ela se deparou com uma enciclopédia que listava nada menos do que 6.000 nomes de mulheres compositoras, do período medieval ao contemporâneo.
Há um consenso na música clássica de que o tempo faz a seleção natural do repertório –o que se produziu e não sobreviveu provavelmente não teria qualidade e interesse. Mas esse não era o caso.
“Era tudo o que gostaria de ter escutado quando criança, na época em que sonhava em ser cantora lírica num país em que isso não é a profissão mais óbvia”, diz Di Laccio.
Nascida em Canoas, no Rio Grande do Sul, a artista foi aluna de Neyde Thomas e formou-se em canto lírico na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Na faculdade, encorajada por um maestro britânico, fez teste para cursar pós-graduação no Royal College of Music, em Londres. Aprovada, conseguiu uma bolsa.
Diplomou-se em música antiga e performance em ópera, ao mesmo tempo em que começava a carreira profissional. “Há milhares de cantores em Londres, a grande maioria de alto nível. O que me ajudou foi ser criativa. Nunca fui uma cantora de fazer uma coisa só”, conta. “Atuei da música barroca à contemporânea, passando pelo repertório sul-americano. Comecei a ter trabalho, e tu acaba ficando aonde o trabalho está, né?”
Foi a vontade de criar programas diferentes que a levou até as mulheres compositoras. À medida que ia conhecendo as obras, sentia-se envergonhada por nunca ter ouvido falar de nenhuma delas. “Comecei a perguntar para colegas e maestros, mas vi que a ignorância não era só minha, mas do mundo musical.”
“Passei boa parte da minha vida indo a concertos e nunca questionei a ausência de mulheres. Quando me dei conta disso, foi um divisor de águas.” A conscientização a levou a criar, no início de 2018, o projeto Donne – Women in Music, uma plataforma dedicada a promover e apoiar a inclusão de mulheres na música.
Um levantamento da League of American Orchestra junto a orquestras dos Estados Unidos em 2013 mostrou a existência de uma mulher regente para cada 21 homens. Há menos de 40 anos, as filarmônicas de Viena e Berlim não aceitavam mulheres em suas fileiras. Já no início do ano passado, um estudo da União Brasileira de Compositores mostrou que dos 100 maiores arrecadadores de direitos autorais no país, apenas 10 são mulheres.
A plataforma Donne reúne iniciativas que o projeto promove e inclui uma lista reunindo o nome de milhares de compositoras ao longo da história. Já o Donne 365 apresenta duas compositoras por dia, sempre acompanhadas de uma de suas obras. Ainda é possível acessar, no site, playlists, podcasts e pequenos vídeos biográficos. Há também iniciativas mais ousadas, como a encomenda de novas obras e o lançamento de discos de compositoras.
“Não sou acadêmica, sou performer, e minha intenção é trazer esses nomes pra perto do público”, explica Di Laccio, que já havia criado, em 2016, o selo Drama Musica. Com o Donne, ela diz que sua vida profissional se transformou radicalmente, estabelecendo contatos e projetos.
Ainda em 2018, a brasileira fez um levantamento sobre a porcentagem de obras de mulheres tocadas na temporada das 15 melhores orquestras do mundo, segundo ranking da revista Gramophone daquele ano. O resultado foi chocante: pouco mais de 2%. O jornal The Guardian publicou a pesquisa e, de repente, a iniciativa cresceu.
“Comecei a receber e-mails de mulheres do mundo inteiro agradecendo, querendo entrar na lista. As mensagens vinham com muita gratidão, eu não estava preparada. A partir daquele momento ficou impossível não pensar nesse assunto como artista quase que diariamente”, conta. Ainda naquele ano, Di Laccio acabou integrando a lista da BBC com as cem mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo.
Desde novembro, o Donne se tornou uma fundação, o que deve facilitar a expansão dos projetos. Mas ainda há resistência de instituições. “O que acontece muito é as pessoas fingirem que esse é um problema que não está acontecendo. Uma solução seria que as orquestras tivessem um conselho artístico diversificado, incluindo mulheres, negros, indígenas, LGBTs. Só assim será possível saber das necessidades dos grupos.”
Como artista, o grande objetivo de Gabriella Di Laccio sempre tinha sido construir sua personalidade. Agora, isso já não é mais suficiente.
“Quero ser uma artista com relevância, mas não apenas no palco. Da maneira que nosso mundo está agora, não vejo espaço pra dizer: ‘Ah sou só uma cantora lírica, não posso fazer nada’. A gente acha que são pequenas coisas, mas não são. O que não podemos fazer é fingir que nada está acontecendo nada”, afirma.
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