As primeiras 165 páginas da biografia de Luiz Inácio Lula da Silva (Lula, biografia, Companhia das Letras, 447 págs.), do jornalista e escritor Fernando Morais, descrevem detalhadamente as horas de tensão antes de o líder petista se entregar aos delegados da Polícia Federal que o levaram a Curitiba e sua vida na cadeia até a libertação, em 8 de novembro de 2019. O relato é completado por cartas escritas do cárcere. Mas o leitor não encontrará a mesma análise das acusações, das provas e dos processos que levaram à condenação do ex-presidente na Operação Lava Jato.
A obra trata da prisão, portanto, sem abordar a corrupção dos governos petistas. Morais diz que isso deve acontecer no segundo volume, previsto para ser publicado em 2023, convenientemente, depois da eleição do próximo ano, quando Lula se prepara para disputar mais uma vez a Presidência. O autor justifica a decisão editorial afirmando que não quer que o livro seja usado na campanha eleitoral. Caberá ao leitor julgar essa afirmação do escritor. Morais diz não crer que seja uma ilusão pretender conhecer a vida de quem quer que seja por meio de uma biografia. É o homem que se debruçou sobre as vidas de Olga Benário, Assis Chateaubriand e Paulo Coelho e que, agora, pretende contar a vida do ex-presidente.
Trata-se de um desafio à integridade intelectual de qualquer autor publicar um livro sobre Lula a um ano da eleição, sem ser acusado de detratar o personagem ou de ser meramente laudatório. A obra começa com os seis capítulos sobre o petista na prisão. Morais justifica: “Assisti a tudo de perto”. Apesar de sua proximidade ao biografado, ele nega que isso tenha influenciado suas escolhas e análises. “Lula só leu o livro nesta semana, depois de pronto.”
Com a publicação de Lula, biografia, haverá questionamentos à Companhia das Letras sobre a opção de editar a obra que trata do petista feita por um escritor que declara simpatia pelo ex-presidente. Aos jornais, revistas e outros órgãos de imprensa fica o desafio de como classificar o livro. Certamente, os críticos de Morais vão dizer que se inaugura aqui o gênero ‘militância’. A explicação disso pode estar em um ensaio do sociólogo Pierre Bourdieu. Em A Ilusão Biográfica, Bourdieu condenava a pretensão de se conhecer a vida de um biografado pela simples disposição de fatos, como se fossem estações de uma linha de metrô.
POLÊMICAS
Morais escreve sem notas de rodapé ou menções detalhadas às fontes. O livro salta da libertação em 2019 para a primeira prisão de Lula, em 1980, no ABC. Ele relata com algum interesse, mas sem novidades, uma fase da vida de Lula longe das polêmicas que se avolumavam à medida que o PT se aproximava do poder. É possível reler sobre o apoio de Lula ao golpe militar de 1964, de sua oposição à política e à esquerda, da participação nos cursilhos da Igreja Católica e do apoio que recebeu do governador Paulo Egydio Martins (Arena) por ter derrotado os comunistas no sindicato. Lula só se envolveria com a política ao apoiar a candidatura de Fernando Henrique Cardoso ao Senado, em 1978.
O primeiro volume se encerra após a derrota de Lula na eleição de 1982, para governador de São Paulo. Pensa, então, em desistir da política, mas é convencido do contrário, segundo o biógrafo, por Fidel Castro. O leitor não achará as campanhas presidenciais de Lula. Ainda ficará para o segundo volume o escândalo de corrupção nas prefeituras do PT detonado pelas revelações de Paulo de Tarso Venceslau. Ali também não há mensalão ou Lava Jato.
Mas isso não significa que o autor não tenha opinião sobre esses fatos. Para Morais, “houve promiscuidade e corrupção nos governos petistas, mas Lula foi alvo de perseguição feita por Moro e pela imprensa”. Ele busca apresentar dados para medir a quantidade de manchetes desfavoráveis ao ex-presidente. Mas o escritor, que viajou com Lula para dezenas de países a fim de entrevistá-lo durante os voos, não compara os dados de Lula com os de manchetes sobre outros políticos que experimentaram dissabores, como José Sarney durante a Operação Boi Barrica ou os atos secretos do Senado, ou Fernando Collor na Lava Jato ou mesmo Michel Temer, preso após deixar a Presidência.
MARINHA
Como revelação, o livro traz informações obtidas em documentos da Marinha, que mostram que a decisão de prender Lula em 1980 foi tomada pelo Exército, que planejava um arrastão para deter lideranças de oposição identificadas com os comunistas. Por fim, Morais entrevista nesse primeiro volume dezenas de fontes, a imensa maioria amigas e aliadas de Lula.
Faltou dar voz aos adversários e aos que investigaram o ex-presidente, pois só com as mais variadas fontes o biógrafo pode ter a pretensão de saber mais da vida de seu personagem do que o próprio biografado. O escritor promete fazê-lo no segundo volume, ouvindo Antonio Palocci, Fernando Collor e Fernando Henrique. Seria necessário acrescentar Deltan Dallagnol e Sérgio Moro à lista. Só então o leitor saberá se não foi uma ilusão buscar conhecer a vida de Lula por meio de uma biografia. Por enquanto, até que as urnas se fechem, fica a versão dos militantes e de um jornalista que tem lado.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.