SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ricardo de Azevedo, 72, conta uma troça que sempre faz com um companheiro do campo progressista: “Brinco com o Zé Dirceu que a gente briga desde os anos 1960, mas sempre do mesmo lado”.
Ele, influente dirigente da AP (Ação Popular), e o ex-ministro lulista José Dirceu, 75, à época na dissidência paulista do PCB (Partido Comunista Brasileiro), podiam ser oposição dentro da turma que lutou contra a ditadura militar. Na hora do vamos ver, contudo, era todo mundo unido contra os milicos, lembra Azevedo.
Mais de meio século depois, os antigos amigos e rivais se esbarram no Geração 68 Sempre na Luta, movimento criado por quem, em 1968, participou da resistência contra um endurecido regime pós-Ato Institucional nº 5, o AI-5.
Na linha de frente estão septuagenários (os músicos Chico Buarque e José Miguel Wisnik, o fotógrafo Sebastião Salgado, os escritores Marilena Chaui e Fernando Moraes, o diplomata Celso Amorim, o vereador Eduardo Suplicy) e até octogenários (a deputada federal Luiza Erundina e o ex-governador do Paraná Roberto Requião).
O inimigo agora, segundo manifesto do grupo, é Jair Bolsonaro, “que intencionalmente tem induzido a morte de milhares de brasileiros”, na pandemia da Covid-19.
“Conjugada à pandemia, pela inépcia governamental, se abateu sobre os segmentos mais fragilizados a miséria e a fome. Quantos ainda terão de morrer pelo negacionismo do governo federal?”
Para Dirceu, como em 1964, a democracia está a perigo, e menos mal que uma frente democrática antibolsonarista “já exista na prática”.
“Não é o que vemos quando ex-ministros dos quatro últimos presidentes [Michel Temer, Dilma Rousseff, Lula e FHC] coassinam nota exortando as Forças Armadas a ignorar clamores por intervenção militar? Ou quando Lula encontra FHC, quando há diálogo no Congresso com [o então presidente da Câmara Rodrigo] Maia, às vezes até com o centrão?”, diz o ex-dirigente petista.
Quando a carta aberta da geração 1968 foi escrita, o Brasil tinha acabado de ultrapassar o marco de 400 mil mortos por Covid-19. Beira hoje meio milhão de vítimas.
Em maio, levou um signatário. René Louis de Carvalho, filho de Apolônio de Carvalho, histórico militante da esquerda que lutou contra o nazifascismo na Segunda Guerra, tinha 76 anos.
Guerrilheiro no Araguaia preso pelo Exército, o ex-presidente do PT José Genoino, 75, ficou cinco anos na cadeia. Quando saiu, em 1977, o maior medo era saber se um companheiro caiu (foi pego pelo regime), lembra. “Agora, a gente fica apreensivo com quem tá com Covid.”
Parte do Geração 68, Genoino incluso, estará na manifestação deste sábado (19) contra Bolsonaro. “Vou com todos os cuidados para não participar de aglomerações. Até porque eu não poderia deixar de ir, como um dos sobreviventes da Geração 68. A maioria não existe, foi eliminada. Acho que é até dever cívico estar presente.”
O petista se descreve como um veterano de quarentenas. “Já é a terceira”, diz sobre o confinamento pandêmico.
A primeira, segundo ele, foi a prisão pelos militares. A segunda, o ano e meio que passou em regime semiaberto por causa de uma condenação no mensalão, escândalo que também aprisionou Dirceu –a pena de Genoino foi extinta em 2015 pelo STF (Supremo Tribunal Federal), após indulto concedido por Dilma.
Como quase todos os colegas de 1968, Genoino está vacinado contra a Covid-19. O movimento surgiu justamente por causa disso, diz Ricardo de Azevedo. Começou com o jornalista José Trajano, 74, que escreveu um artigo “lembrando que só bolsonarista ia para a rua”.
Aí a imunização engatou em idosos. “Ele dizia que agora os velhinhos de 68 poderiam ir para as ruas e apontou uma data, 26 de junho.” É o aniversário de 53 anos da Passeata dos Cem Mil.
A passeata virou a das 500 mil vítimas da pandemia. Os “cabeças-brancas” farão um ato simbólico no dia 26, mas estarão também na manifestação deste sábado.
Azevedo resgata uma memória dos velhos tempos. A censura dormiu no ponto, achou que a letra tratava de uma briga de casal e liberou em 1970 uma música de Chico Buarque, apoiador do atual movimento, com o clássico começo: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”.
Teve vida curta antes dos censores se tocarem do pouco subliminar conteúdo, uma bofetada nos fardados.
“Perceberam que não era uma queixa para a namorada, mas um violento protesto contra o governo. A gente tocava baixinho para não ouvirem, era uma espécie de hino da resistência”, rememora o ex-combatente da AP. “Morríamos de rir porque tínhamos enganado a ditadura.”
“Apesar de Você” foi ouvida em panelaços contra Bolsonaro cinco décadas depois.