Os atuais comandantes-gerais das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros se opuseram, em unanimidade, ao projeto de lei que institui um mandato de dois anos e a lista tríplice como forma de escolha dos ocupantes desses cargos. A informação consta em nota técnica dos conselhos nacionais que reúnem os comandantes, obtida pelo Estadão. No documento, eles argumentam que o projeto atenta contra autonomia dos governadores e traz riscos à disciplina e à hierarquia na tropa.
Os deputados ressuscitaram a discussão sobre a lista tríplice, que se arrastava desde janeiro do ano passado, e tentaram colocar o projeto de lei para tratar apenas desse tema em votação nesta terça-feira, dia 2. Na véspera, depois de o Estadão mostrar que a pauta seria apreciada pela Comissão de Segurança Pública no esforço concentrado antes das eleições, os comandantes-gerais enviaram a nota técnica ao deputado Aluísio Mendes (Podemos-MA), presidente do colegiado. Mendes se disse contra a lista na sessão desta terça. Ele cedeu e afirmou que só pretende pautar o projeto novamente depois das eleições.
O documento foi assinado pelo coronel Paulo José Reis de Azevedo Coutinho, comandante-geral da PM da Bahia e presidente do Conselho Nacional de Comandantes-Gerais das PMs (CNCG), e pelo coronel Edgard Estevo da Silva, comandante-geral do Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, e presidente do Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (Ligabom).
Eles lembraram que a lista tríplice foi apreciada quando da discussão sobre a lei orgânica das PMs e que o tema já havia sido superado, após reuniões com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, parlamentares da bancada da bala e entidades representativas de policiais e bombeiros militares, além de acadêmicos e especialistas em segurança pública.
‘A matéria em tela já se encontrava contemplada no Projeto de Lei nº 4363/2001, onde foi repelida à unanimidade pela Assembleia-Geral dos sobreditos colegiados, haja vista atentar flagrantemente contra a autonomia dos gestores dos entes federados e apresentar potenciais riscos à hierarquia e à disciplina das Corporações’, diz trecho do documento. ‘Seria pouco razoável admitir que militares com insuficiente conhecimento das organizações e possuidores de parco tempo de serviço, segmento majoritário das instituições, tenham condições de discernirem dentre aqueles oficiais de último posto o qual efetivamente reúna capacidade técnica para conduzir os destinos das corporações, possibilitando o comprometimento da ação de comando pelo enviezamento de tal escolha’, argumentaram os conselhos nacionais.
Para o Instituto Sou da Paz, a lista tríplice, além de limitar o controle do chefe do Executivo sobre o braço armado do Estado, fortalece a agenda corporativa dos comandantes e recrudesce disputas políticas internas, com campanhas para coronéis concorrerem à indicação a cada dois anos.
‘O projeto que se propõe limitar ingerências políticas indevidas nas polícias acabaria, na prática, por acirrar ainda mais a politização entre seus membros, realidade incompatível com uma instituição militar e prejudicial para a própria função policial’, afirmou o Sou da Paz por meio de nota.
Nos bastidores, governadores de Estado também atuaram contra o projeto. A pressão fez o governo Jair Bolsonaro comunicar aos deputados, discretamente, que era favorável ao adiamento da votação. Segundo parlamentares ouvidos pela reportagem, uma servidora da Liderança do Governo na Câmara disse que a posição oficial era contra o ponto central do projeto, a imposição das escolha por lista tríplice. Não houve, porém, nenhuma declaração do presidente Jair Bolsonaro ou do ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, contra a iniciativa.
Parlamentares da bancada da Segurança Pública observaram, porém, que o presidente não aceita seguir a lista tríplice, por exemplo, na escolha do procurador-geral da República, tampouco na nomeação do diretor-geral de Polícia Federal. Eles enxergaram uma brecha para a pauta se voltar contra o presidente. Por causa do corporativismo no setor, há nos bastidores o temor de que se, se a provada para as PMs, a lista tríplice pudesse ser reivindicada por outras corporações policiais, entre elas as ligadas à União, como PF e a Polícia Rodoviária Federal. A PF já tentou aprovar uma emenda constitucional para a escolha do delegado que comanda a instituição.
O deputado Subtenente Gonzaga (PSD-MG) diz que a pauta retornou, às vésperas das eleições, por ter apelo na base das polícias militares e bombeiros e não por vínculo com o governo Bolsonaro. Segundo ele, apesar de ser muito próximo do presidente, o relator, Cabo Junio Amaral (PL-MG), optou por tocar um projeto de seu interesse político, contra a orientação do governo. Outros deputados já haviam proposto leis com teor semelhante – uma delas chegou a ser aprovada na comissão em 2017, mas não avançou depois. O próprio Gonzaga afirma que militou a favor da tese no passado, mas que percebeu impropriedades.
‘O governo federal cedeu à argumentação dos Estados e dos comandantes. Não houve outra argumentação técnica da liderança do governo, só apoio à manifestação dos comandantes. O problema é o fundamento, porque não se aplica lista tríplice para cargos de polícia em lugar nenhum. É função executiva do governador nomeá-los’, diz Gonzaga. ‘A visão do conjunto dos militares é que o comandante deve ser um representante da tropa junto ao governo e não um representante do governo diante da tropa, que é o que o modelo atual contempla, porque o cargo de comandante é político, um cargo de poder, de livre nomeação. Os comandantes são cobrados por lealdade ao governo, e isso muitas vezes significa ser contra melhorias salariais. Essa é a crítica que alimenta o debate da lista tríplice.’