Quase um século após sua criação, a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) pode ter pela primeira vez um representante brasileiro na vice-presidência do Comitê Executivo. O delegado de Polícia Federal Valdecy Urquiza Júnior disputa a vaga com candidatos da Colômbia e de Trinidade e Tobago.
A eleição está marcada para a próxima quarta-feira, 25, quando representantes dos países-membro vão se reunir pela primeira vez desde o início da pandemia em Istambul, na Turquia, para participar de uma versão encurtada da Assembleia Geral – que, em condições normais, é convocada anualmente.
Ao todo, 194 nações integram hoje a Interpol em um esforço coletivo para oferecer resistência a crimes transnacionais. Sem uma perspectiva concreta para o fim da crise sanitária, alguns países decidiram não enviar delegações ao evento, o que deve reduzir o universo de participantes a 160 nações, aumentando o peso de cada voto.
O Comitê Executivo da Interpol é responsável por indicar, a cada cinco anos, o secretário-geral da organização. Há também outras atribuições estratégicas, como a definição do orçamento, das metas a serem priorizadas a cada gestão e das diretrizes de fiscalização das atividades. A perspectiva de participar das tomadas de decisão faz com que, tradicionalmente, as vagas sejam disputadas até a véspera da votação. As eleições deste ano acontecem em meio a uma demanda crescente por maior diversidade geográfica nos cargos de tomada de decisão.
“De fato, o poder da organização vem desse conselho. Isso porque todos os países participam da organização em um espírito de cooperação multilateral, mas evidentemente que cada um tem sua agenda prioritária”, explica o delegado Valdecy Urquiza Júnior em entrevista ao Estadão. “Hoje ainda há uma concentração, nos cargos de direção da organização, de países da Europa. O Comitê Executivo traz a possibilidade de o Brasil influenciar mais nas decisões pensando em seus interesses nacionais e regionais”, acrescenta o candidato brasileiro.
Urquiza disputa a vaga de vice-presidente das Américas para um mandato de três anos. O Comitê tem ainda vice-presidentes oriundos da Ásia, África e Europa, além de delegados para cada região do globo e de um presidente que comanda o colegiado.
Embora a articulação para angariar apoio em torno da candidatura do delegado tenha sido iniciada com antecedência, há pouca margem para prever o resultado da votação. Isso porque, até o dia que antecede a eleição, os países ainda podem colocar novos nomes na disputa. Fora o fator surpresa, outro aspecto que dificulta prognósticos é a definição de alianças estratégicas pessoalmente, nos primeiros dias da Assembleia Geral, quando representantes dos países sentam à mesa em sucessivas reuniões bilaterais.
“Nesse termômetro das bilaterais é que a gente consegue de fato sentir o volume de apoio. A impressão que nós temos até agora é que a candidatura é robusta e viável, mas pela experiência de eleições anteriores, a gente só consegue saber no curso da Assembleia. É um ambiente muito volátil”, avalia Urquiza.
Entre os pares, o delegado é visto como alguém que tem uma ‘visão global’ do trabalho das polícias. Além de ter comandado o escritório central da Interpol no Brasil, entre 2015 e 2018, também liderou uma equipe de 60 policiais, de diferentes nacionalidades e espalhados em seis países, enquanto chefiou a Diretoria de Crime Organizado na Interpol em Lyon, na França, até dois meses atrás.
“Esses trabalhos deram uma projeção não só ao Brasil, mas também a mim enquanto delegado de Polícia Federal. A experiência em Lyon fez com que eu mantivesse, ao longo desse período todo, uma articulação muito forte com os diversos países que são membros da organização”, afirma.
Desde 2018, o Brasil é representado no Comitê Executivo pelo delegado de Polícia Federal Rogério Galloro no posto de delegado para as Américas. O fim mandato, no entanto, coincide com as eleições na próxima Assembleia Geral. A PF apostou na candidatura de Urquiza como uma estratégica para manter a participação do País no conselho.
Leia a entrevista completa com o delegado Valdecy Urquiza Júnior:
Como o nome do Sr. foi escolhido? É uma escolha do diretor-geral da Polícia Federal?
Qualquer país pode apresentar candidatura estabelecidos alguns critérios. O Brasil pode concorrer, no Comitê Executivo, às vagas que são destinadas a representantes dos países Américas. Essas vagas são: uma vaga de vice-presidente e duas vagas de delegados. São três postos para cada região do globo. A decisão de aplicar uma candidatura e, aplicando a candidatura, quem será o candidato é uma decisão do país. No caso do Brasil, foi uma decisão tomada em conjunto pela Polícia Federal, Ministério da Justica e Ministério de Relações Exteriores. Os critérios analisados para essa escolhas são a capacidade de exercer as atribuições do cargo uma vez eleito e, evidentemente, aquele nome que puder agregar mais apoio de outros países em torno da sua candidatura. Essa decisão foi tomada aqui na Polícia Federal, depois de uma análise entre vários potenciais candidatos, basicamente considerando a experiência que eu tive desde 2014 à frente das diversas áreas de cooperação internacional da Polícia Federal e junto à própria Interpol. O processo de escolha foi desenvolvido ao longo desse ano todo.
Por que é importante para o Brasil ocupar esse cargo? De onde vem essa avaliação de que o País deveria concorrer esse ano?
Ao longo das últimas duas décadas, os crimes passam a ser cada vez mais transnacionais e exigem que a produção de prova seja realizada em mais um país. Ano após ano, o trabalho de cooperação policial internacional ganha mais relevância. A Interpol foi criada, em 1923, pensando só em fugitivos. Hoje basicamente qualquer tipo de delito é transnacional e exige atividade internacional para elucidação do fato. A Polícia Federal vem expandindo nos últimos anos a atuação nessa área para garantir que nossas investigações continuem eficazes. O Brasil faz parte de algumas plataformas regionais, como Europol e Ameripol. Há também plataformas próprias da Polícia, como seus adidos no exterior. Mas há uma única plataforma global de fato que é a Interpol. O diferencial é que, desde a sua constituição, a Interpol mantém o mandato legal de armazenar e compartilhar informações de natureza criminal. Além da troca sistematizada de informações, você consegue a união de esforços em torno de interesses regionais ou até mesmo nacionais. Aí começa a discussão da importância de aplicar para uma vaga. A organização é dirigida por um grupo de diretores, o braço executivo, liderados por um secretário-geral. Por outro lado, há o braço de governança, que é o Comitê Executivo, uma espécie de conselho de administração com atribuições estratégicas, como a definição de orçamento, priorização e fiscalização das atividades, indicação e manutenção do secretário. Tradicionalmente esse comitê sempre foi muito disputado por todas as nações. De fato, o poder da organização vem desse conselho. Isso porque todos os países participam da organização em um espírito de cooperação multilateral, mas evidentemente que cada um tem sua agenda prioritária. Nosso interesse é participar da tomada de decisões estratégicas. Hoje ainda há uma concentração, nos cargos de direção da organização, de países da Europa. O Comitê Executivo traz a possibilidade de o Brasil influenciar mais nas decisões pensando em seus interesses nacionais e regionais.
Qual função efetiva que desempenha o vice-presidente da Interpol?
O vice-presidente é a voz final para a região. O representante da região, de fato, não só nas reuniões do comitê, mas para as diversas ações da organização, é de fato o vice-presidente. Também é o responsável por promover a articulação dos países da região, principalmente por meio das reuniões bianuais com todos os chefes de Polícia das Américas, presididas pelo vice-presidente. É o momento em que são preparados os temas que a região quer dar encaminhamento na Assembleia Geral.
O Sr. foi chefe do Escritório Central da Interpol no Brasil (2015-2018) e diretor de crime organizado da Interpol em Lyon, na França (2018-2021). Como foi esse trabalho anterior na organização?
Esses trabalhos deram uma projeção não só ao Brasil, mas também a mim enquanto delegado de Polícia Federal. A experiência em Lyon fez com que eu mantivesse, ao longo desse período todo, uma articulação muito forte com os diversos países que são membros da organização. Na chefia do escritório da Interpol no Brasil, nós iniciamos a estratégia de robustecer nossa atuação internacional e reestruturar nossa atividade na Interpol. Disso resultou a restauração do nosso grupo de capturas internacionais. Em 2015, chegamos a bater o recorde histórico da localização de foragidos internacionais do exterior no Brasil. Tivemos ainda uma reestruturação da nossa atividade operacional, para fortalecer o desenvolvimento de operações conjuntas com outros países. Passamos a focar também na qualidade do uso dos dados criminais mantidos pela Interpol, alimentando de forma mais sistematizada e consumindo melhor esses bancos de dados. Um exemplo: passamos cruzar, em tempo real, todo o nosso controle migratório e toda a lista de passageiros de voos internacionais com os bancos de dados da Interpol. Nós instituímos também a utilização do banco de dados para rastreamento de armas. Outra iniciativa foi a inclusão de informações de veículos roubados do Brasil que possam ter sido desviados para outros países. Passamos a usar também mais os dados de biometria na identificação não só de fugitivos, mas também de pessoas desaparecidas, e a enviar especialistas em identificação facial e biometria para trabalhar na Interpol construindo metodologias e aprendendo novas técnicas. Outra iniciativa foi a nossa entrada oficial, em 2015, no complexo global de inovação tecnológica da Interpol em Singapura, que é o maior centro global de inovação policial do mundo. Esse foi o trabalho desenvolvido ao longo de quase quatro anos e, por conta dele, a Interpol convidou o Brasil, pela primeira vez, para participar do processo seletivo para uma vaga de direção. Nessa posição em Lyon, me coube definir e implementar a estratégia global da organização na área de crime organizado, com foco mais específico em um programa prioritário para comunidades vulneráveis e um componente muito forte também da parte de crimes financeiros e cibernéticos. Esse trabalho envolvia tanto atividades estratégicas quanto operacionais. Paralelo a isso, cabia também a liderança de um esforço na atividade de identificação de vítimas de exploração sexual infantil.
O Sr. calcula que sua candidatura tem apoio de quais países? A PF tem dialogado com representantes de outras delegações?
Na manhã de quinta-feira, dia 25, lá em Istambul eles vão abrir a votação para escolha do presidente do Comitê Executivo e dos representantes de cada região. Até o dia anterior, há possibilidade dos países apresentarem novas candidaturas. O que a gente tem de mais claro hoje são as candidaturas oficialmente postas (Colômbia e Trindade e Tobago), mas não é incomum que na abertura da Assembleia outras delegações apresentem nomes para a disputa. Evidentemente que eles não têm o mesmo peso de uma candidatura que vem sendo trabalhada de forma estruturada, mas é um fator que que torna difícil fazer previsões. Dos 194 países membros, há uma expectativa de presença de cerca de 160 delegações, cada uma delas tem um voto. Esse voto é influenciado por alguns fatores: as características técnicas e pessoais de cada candidato; o trabalho diplomático construído em torno daquela candidatura, desenvolvido em conjunto pela Polícia Federal e o Ministério de Relações Exteriores; e o histórico de relações de cooperação entre as polícias dos países. É o conjunto desses fatores que vai definir a massa de votos. No dia anterior à votação é reservado um momento para cada um dos candidatos apresentar um discurso ao plenário, que também costuma influenciar a escolha daqueles países que ainda não definiram o voto até o último instante. De modo que, para ter um panorama mais específico, é preciso aguardar o andamento da Assembleia Geral. Durante o evento, é feito um trabalho de reuniões bilaterais constantes. Esse ano, como a Assembleia foi reduzida, os países resolveram iniciar esses trabalhos antes do evento, no domingo, para manter a possibilidade do volume esperado de reuniões. Elas servem para discutir assuntos diversos, inclusive as possibilidades de apoio ainda não-declarados para as candidaturas. Nesse termômetro das bilaterais é que a gente consegue de fato sentir o volume de apoio. A impressão que nós temos até agora é que a candidatura é robusta e viável, mas pela experiência de eleições anteriores, a gente só consegue saber no curso da Assembleia. É um ambiente muito volátil.
Qual será a composição da delegação enviada pelo Brasil para participar da Assembleia? Além do diretor-geral, os ministros da Justiça e das Relações Exteriores vão ao evento?
No passado, a gente já teve presença de ministros de Estado. Depende da agenda também. Esse ano quem vai liderar a delegação é o diretor-geral da Polícia Federal. É o esperado, independente da candidatura, porque é o mais relevante evento de discussão estratégica para as polícias. É um evento que dificilmente é perdido por algum chefe de organização policial. Também é quase obrigatória a presença do chefe do escritório da Interpol em cada país para discussões de ordem técnica, que não raro só podem ser travadas pessoalmente. Outra presença esperada é do coordenador de cooperação internacional para reuniões bilaterais que discutem, por exemplo, o estabelecimento de missões diplomáticas policiais e o fortalecimento de posições nos diversas organismos regionais. Eu estarei presente, como candidato, uma vez que o candidato só pode ser votado se comparecer na Assembleia. Há ainda técnicos designados para conduzir apresentações em painéis. Via de regra, a Polícia Federal também sempre convida o Ministério de Relações Exteriores para participar e é esperada a presença deles na delegação, principalmente porque estamos no processo de eleição, a participação deles é ainda mais relevante.