Apelidada de “Cracolândia” de São Carlos (SP), a Praça General Carlos de Meira Mattos, localizada na Vila Costa do Sol, região do Terminal Rodoviário, se tornou moradia de muitas pessoas em situação de rua. A estadia permanente delas no local, porém, já incomoda comerciantes, moradores e políticos, que pedem uma solução. Cientista social diz que é preciso fortalecer a rede de proteção social no município e realizar ações integradas na região. Além disso, explicou que não adianta chamar a polícia para ‘espalhar’ essas pessoas (veja abaixo).
“Eu acho que deveria arrumar algum lugar para eles, porque nem todos que estão ali são moradores de rua. Então a gente não sabe se dá para confiar ou não”, afirmou uma moradora que preferiu não se identificar.
Ainda segundo ela, o medo de ser assaltada na região é diário. “A gente sai para trabalhar e tem que passar por ali. Então fica difícil, porque já roubaram muitas mulheres ali para baixo. A gente não sabe se é ladrão mesmo ou se é dali”, explicou.
A comerciante Nilva Fernandes, que tem um salão de beleza no bairro há cinco anos, também reclamou da insegurança e disse que um dos moradores de rua tentou arrombar a porta do seu estabelecimento no dia 11 de outubro. “Tem que viver de porta fechada, ou seja, a gente virou prisioneira dos moradores de rua”, afirmou.
Por conta dessa situação, a comerciante já pensa em se mudar da região. “Eu perdi clientes, porque vivo de portas fechadas. Eu não faço só serviço de beleza, mas também tiro cópias, xerox. Eu não posso pôr mais lá fora, porque podem roubar (…). Eu já estou olhando para sair daqui. Você não tem liberdade para sair na rua “.
Proprietária de imóveis perto da praça, uma outra moradora, que vive há mais de 50 anos no bairro, disse ter notado um aumento de moradores de rua no local durante a pandemia. “Eles estão aí faz um ano e pouco. Antes não tinha nenhum (…). Uma hora eles vêm pedir dinheiro, uma hora quer comida, então perturba muito”, complementou a moradora, que também preferiu não ser identificada.
A mulher também reclama da sujeira provocada por eles, além falta de higiene. “Minha vizinha tem o instituto ali e eles vão fazer cocô na escada do instituto dela à noite. Tem que ser feito alguma coisa, não pode continuar. Tem tanta vila longe, porque eles não vão para lá? Eles ficam logo aqui”, disse.
As reclamações dos moradores da região também chegaram ao vereador Robertinho Mori Roda (PSL), que pediu providências do Poder Público. “Estão colocando barracas, sofás, estão mobiliando aquela praça. Está virando uma Cracolândia. Mas, pasmem, a Defensoria Pública não permite que a polícia bata nem revista naquelas pessoas”, afirmou o político na tribuna da Câmara Municipal, durante a sessão do dia 28 de setembro de 2021.
“Entendo perfeitamente a importância da Defensoria Pública do nosso município, mas tudo tem um limite (…). Não estamos pedindo para chegar lá e bater, não é nada disso, mas nós precisamos arrumar uma solução”, complementou o parlamentar.
AUMENTO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
De acordo com dados da Secretaria Municipal de Cidade e Assistência Social, o número de moradores em situação de rua saltou de 246, em 2019, para 400 em 2021 – o que representa um aumento de 62,6%.
Para o comandante da Guarda Municipal de São Carlos, Michael Yabuki, outras cidades da região teriam colaborado para esse crescimento da população de rua. “Várias cidades acabam enviando esses moradores de rua que passam por essas cidades para São Carlos, principalmente Ribeirão Preto. Teve uma época que eles mandavam muita gente para cá”, afirmou.
Questionado sobre a possibilidade de retirar as pessoas da praça “na marra”, Yabuki ressaltou que a Constituição Federal garante o direito de ir e vir de todos, mas que esse direito não é absoluto. “Eles não podem interferir no direito de ir e vir das outras pessoas. Retirá-los é uma situação mais complexa, porque a Cidadania vem prestando assistência a essas pessoas, para tentar retirá-las desses locais sem uma força excessiva”, disse.
A ex-secretária de Cidadania e Assistência Social, Glaziela Solfa Marques, explicou, em entrevista à CBN São Carlos, que a cidade conta atualmente com o Centro Pop, onde é feito o trabalho de acompanhamento e orientação das pessoas em situação de rua.
Além disso, ressaltou que também vem sendo realizado um trabalho de abordagem social naquele local, onde os profissionais vão até as ruas e fazem o contato direto com as pessoas. “É um trabalho insistente de sensibilização, de apresentação dos serviços e de tentativas também”, disse.
Em relação aos usuários de drogas, explicou que Secretaria vem buscando identificá-los para os encaminhar ao Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS AD). “O trabalho vem sendo feito em conjunto com a Secretaria de Saúde. A gente entende que é uma questão de saúde pública e que precisa de uma atenção especial, então as pessoas são cuidadas e podem ser levadas aos serviços”.
Glaziela Solfa também citou outra parceria com a Secretaria de Saúde para buscar ajudar os dependentes químicos encontrados no local e em outros pontos da cidade, que é o consultório na rua. “Ele faz esse trabalho no território, nas ruas, nas praças, para falar com as pessoas, sensibilizar elas para o serviço, ao seu autocuidado. Então é um trabalho que a gente faz de forma sistemática”.
Por fim, a ex-secretária disse, no entanto, que a situação na região da rodoviária é mais complicada, porque muitos daqueles que ali estão já passaram pelos serviços de assistência, mas não permaneceram. “Apesar disso, a gente sempre vai tentar insistir e buscar outras alternativas (…). Cada pessoa que está na rua é um perfil muito particular, é muito subjetivo. Por isso é tão importante os atendimentos, para conhecer cada um e tentar ir trabalhando para essas questões serem superadas”.
CAUSA E ‘SOLUÇÃO’?
Cientista social formada na UFSCar e doutoranda em Antropologia na Unicamp, a pesquisadora Deborah Fromm afirma que outras experiências, como na Cracolândia em São Paulo, já demonstraram que soluções populistas, como o uso apenas de força policial para dispersar essas pessoas, por exemplo, não funcionam. “Quando tem essas operações de dispersão, o que acontece? Você amplifica o problema, porque essas pessoas não desaparecem, elas se espalham pela cidade”, disse.
“É muito evidente que não funciona. E isso acaba, muitas vezes, gerando desgaste político e dificulta muitíssimo a ação mais eficiente do Estado, do ponto de vista do trabalho dos agentes de saúde e dos assistentes sociais. Fica muito mais difícil quando você dispersa as pessoas para os agentes agirem. Se elas estão concentradas, fica mais fácil”, complementou.
Para a cientista social, os policiais e agentes de segurança não são os atores mais capacitados para, de forma isolada, liderarem uma ação nesses locais. “Não dá para a gente responsabilizá-los. É preciso que eles deem um suporte e fiquem no background dando o apoio necessário solicitados pelos agentes de saúde e pelos agentes da assistência social, porque a droga é só a ponta do iceberg”.
Fromm também explicou que a concentração de pessoas em situação de rua em regiões centrais das cidades é muito comum e tem explicação: “Fica muito mais fácil de você conseguir dinheiro. Locais de grande circulação são também locais de recurso para essas pessoas, então eles acabam tendo mais qualidade de vida. Se você está nas regiões mais centrais da cidade, é mais difícil você passar fome”.
Em relação aos usuários de drogas, a cientista social diz que a motivação pode ser outra. “Às vezes, as pessoas que moram nas periferias começam a ter um consumo muito intenso e isso começa a dar problema no bairro de origem. Então elas acabam sendo expulsas pelos agentes ali do crime e indo para o centro da cidade”.
Fromm ressaltou, ainda, que ter havido uma precarização da rede proteção social e assistência para a população de rua na cidade. Desta forma, o primeiro passo para buscar começar a resolver o problema seria “fortalecer essa rede e aumentar a capacidade das instituições de acolhimento, como o albergue e o CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], que são instituições que podem receber essas pessoas”.
A doutoranda também destaca a importância de a cidade ter agentes redutores de danos para ir até as praças abordar essas pessoas. “É importante ter esses agentes que façam esse trabalho mais localizado, mas ter também o suporte de instituições de acolhimento para essas pessoas”.
Além disso, a cientista social afirmou que é necessário discutir a questão do acesso à moradia em São Carlos. Citando o programa Housing First (Casa Primeiro), que vem funcionando em países da Europa e também nos Estados Unidos, a pesquisadora diz que é preciso saber de onde essas pessoas estão vindo. “Essas pessoas estão sendo despejadas? Há formas de brecar esses despejos e pensar em políticas de moradias? “, questionou.
“A gente está em um momento de grave crise econômica e alto desemprego. Existem muitas famílias, famílias inteiras, que estão sendo despejadas e indo para a rua”, complementou.