A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) aprovada no Senado para limitar as decisões individuais dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) reabre o debate sobre a concentração de poderes na figura do relator.
O relator é o responsável pela condução do processo. Uma de suas prerrogativas é decidir liminarmente e monocraticamente questões consideradas urgentes, que não podem ser prontamente submetidas ao plenário do STF, pelo nível de congestionamento da pauta. Ele pode, inclusive, suspender a aplicação de leis, atos normativos ou decisões internas do Congresso Nacional.
Deputados e senadores se articulam para reduzir justamente esses poderes individuais. O argumento é que o sistema atual estaria em desequilíbrio, dada a possibilidade de um único ministro do STF derrubar medidas aprovadas por dezenas e até centenas de parlamentares.
“Não se pode mais conviver com um modelo em que decisões judiciais individuais e precárias determinem o futuro de questões de grande relevância nacional”, diz a justificativa do projeto de lei apresentado pelo senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR).
A PEC estabelece que os ministros ficarão impedidos de suspender, por meio de decisões individuais, a vigência de leis aprovadas pelo Legislativo. A versão inicial da proposta previa que as medidas administrativas do governo, assim com as leis aprovadas no Congresso, só poderiam ser derrubadas pela maioria do STF.
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As decisões monocráticas não são soberanas. Elas esbarram na necessidade de supervisão do plenário do STF, ou seja, precisam ser submetidas ao crivo dos demais ministros. Ocorre que, na prática, essas liminares vinham sendo mantidas por anos sem uma revisão do colegiado. Não raro, quando iam a julgamento, já tinham impacto assuntos relevantes da vida política.
Só a partir de dezembro de 2022, na gestão da ministra Rosa Weber como presidente do STF, foi aprovada uma emenda ao regimento interno do tribunal para determinar o envio imediato das decisões individuais ao órgão colegiado responsável – o plenário ou uma das turmas. A mudança foi adotada com a justificativa de reforçar a colegialidade da Corte.
Na prática, o tribunal, ao promover as mudanças por iniciativa própria, se adiantou a tentativas de interferência externa. O movimento, contudo, não foi suficiente para conter investidas de deputados e senadores.
Os ministros estão resistentes. Avaliam que, se a PEC prosperar, pode abrir caminho para outras mudanças e, em última instância, para o enfraquecimento da Corte.
Após a aprovação do texto no Senado, o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que o problema prioritário do Brasil não é o Supremo. Disse também o tribunal não disputa um “torneio de simpatia” e que os setores que se sentirem contrariados pelas decisões da Corte não podem querer mudar sua estrutura e regras de funcionamento.
“É inevitável que o Supremo Tribunal Federal desagrade segmentos políticos, econômicos e sociais importantes, porque ao tribunal não é dado recusar-se a julgar questões difíceis e controvertidas”, reagiu.
O ministro Gilmar Mendes, decano do STF, também criticou a iniciativa do Congresso. Ele disse que o tribunal não “admite intimidações”. Já o ministro Alexandre de Moraes afirmou que qualquer iniciativa que avance sobre a independência ao Poder Judiciário é inconstitucional.
Especialistas ouvidos pelo Estadão defendem que a PEC poderia ter sido debatida com mais tempo e maior participação da sociedade civil, mas avaliam que o texto pode ser eficaz para fortalecer a colegialidade no Supremo. “A aprovação da medida a toque de caixa é o grande nó da questão”, afirma o advogado Nelson Wilians.
Para Antonio de Pádua Soubhie Nogueira, doutor em direito processual civil, mesmo se o texto for aprovado, pode esbarrar na lotação da pauta do plenário, o que pode ampliar, por exemplo, o uso plenário virtual. Em 2022, o STF proferiu 87.983 decisões. Foram 75.351 decisões monocráticas (85,64%) e apenas 12.632 colegiadas (14,36%).
“A fixação legal de prazos para julgamentos é algo que, como demonstra a experiência, não funciona, pois são considerados prazos impróprios e que, por isso, normalmente cedem à pauta assoberbada dos tribunais superiores. Afinal, são pessoas humanas que julgam as ações e, como se sabe, não há tempo hábil para julgar tudo”, comenta Nogueira.
Qualquer alteração sobre a chancela de decisões dos ministros do STF precisa ser aprovada na forma de emenda constitucional, o que demanda maioria qualificada na Câmara e no Senado, além de votação em dois turnos. O texto também pode ser submetido ao controle constitucional pelo próprio Supremo, que pode derrubar, total ou parcialmente, a versão aprovada.
“A despeito disso, a sugestão do Senado e esse debate político certamente servirão a propiciar uma autocontenção maior nessa seara pela Corte Suprema, com vistas a adoção de providências interna corporis para organizar melhor a pauta das ações de inconstitucionalidade de normas e atos da presidência dos demais poderes, notadamente das ações cautelares”, acredita Nogueira.
Relembre decisões monocráticas de ministros STF que suspenderem atos do Congresso e da Presidência:
– Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff;
– Alexandre de Moraes barrou a nomeação do delegado Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal no governo Jair Bolsonaro;
– Barroso suspendeu a lei que estabelece o piso salarial da enfermagem;
– Fux travou implementação do juiz das garantias e de outras mudanças aprovadas no pacote anticrime;
– Moraes suspendeu trechos da Lei de Improbidade Administrativa que flexibilizavam a punição de agentes públicos.
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