por Fabiana Guerrelhas
Ao ler o livro Carta ao pai, de Kafka, deparei-me com um antigo hábito. Desde que me tornei uma pessoa alfabetizada, escrevo cartas, cartinhas e cartonas para me comunicar, expressar sentimentos, contar novidades, fazer contato com quem está longe e prestar homenagens. Lembro com saudade do ritual de umedecer os selos com saliva e de colocar a carta na caixa amarela do correio. Quando o carteiro chegava com algum envelope com meu nome, era uma alegria. Valorizo tanto o ato que ainda guardo muitas dessas boas recordações em uma caixa, incluindo rascunhos de correspondências muito importantes, que releio de vez em quando.
Ao longo da história, já foram escritas cartas tão memoráveis que elas se tornaram obras literárias, como as cartas de amor de Dostoiévski a Anuska, as de Frida Kahlo a Diego Rivera ou as de Fernando Pessoa a Ofélia. Há também cartas lindíssimas entre amigos escritores que viraram livros, como por exemplo Com o mar por meio – uma amizade em cartas, uma compilação da correspondência entre José Saramago e Jorge Amado, organizada por Paloma, filha de Jorge. No livro Todas as cartas, Clarice Lispector expõe sua comunicação com Mario de Andrade, Rubem Braga, Lygia Fagundes Telles, entre outros.
O cinema também já retratou diversas vezes o valor de uma carta. No filme P.S. Eu te amo, uma comédia romântica deliciosa, as cartas póstumas escritas por Gerry (Gerard Butler) para Holly (Hilary Swank) são parte fundamental da superação de um luto. E o filme Ligações perigosas é um belo exemplo de romance epistolar.
A carta de Kafka a seu pai não chegou ao destinatário porque o autor preferiu não enviar. Mas certamente gerou algum bom efeito sobre o escritor. Seu texto exprime uma vida inteira de mágoas e ressentimentos e revela os danos causados por uma relação paterna precária. É muito triste ver como o comportamento desse pai, um homem arrogante, bruto e autoritário invalidou toda a existência do filho, um gênio, por sinal, provocando uma intensa sensação de não pertencimento, insegurança patológica e baixa autoestima. Os motivos? Nunca saberemos. Se o pai iria responder, retratar-se, retrucar fica a critério da nossa imaginação.
Escrever cartas é um instrumento bastante utilizado nos processos terapêuticos. Quando algum paciente está com dificuldade de se expressar pessoalmente, porque ainda não possui as habilidades necessárias para um diálogo produtivo, escrever uma carta pode ser um ensaio ou um primeiro passo para se começar conversas difíceis. Outro procedimento muito válido consiste em pedir que o paciente redija cartas a si mesmo. Esse exercício ilustra a relação entre o que o cliente faz, seus sentimentos e as circunstâncias, produzindo autoconhecimento.
Há muito tempo não escrevo cartas no papel, mas continuo as enviando por e-mail ou WhatsApp. Na maioria das vezes recebi boas respostas, em outras, minha mensagem ficou no vácuo, o que é sempre uma angústia.
Desde a época dos correios, ficar esperando um retorno costuma gerar bastante ansiedade. E agora, em tempos de mensagens eletrônicas e instantâneas, o problema da expectativa não é menor. Receber de volta figurinhas genéricas depois de um textão é muito frustrante e não ter retorno algum, um sofrimento danado. Mesmo assim, escrever uma carta cumpre ao menos parte do seu papel, que é a oportunidade de relatar o que se pensa e revelar o que queremos que o outro saiba. O que o receptor fará com isso, não podemos controlar.
Assim como Kafka, algumas mensagens eu nunca enviei, pois elas tinham somente o intuito de diluir algum sentimento ruim que estava me remoendo ou, então, de organizar minhas ideias, de fazer autocríticas e ter tempo para entender o outro lado. Cartas podem servir como convites, intimações, formas de agradecimento, solicitações, pedidos de desculpas e manifestações de amor e perdão. E além disso, são uma boa maneira de encerrar ciclos.
E já que estamos perto do Natal, época em que a caixa de correio do Papai Noel costuma ficar lotada, devíamos aproveitar a oportunidade para escrever cartas pra ele, pra ela, pra você. Cartas bombásticas, cartas de protesto, de despedida, cartas de amor. Cartas para resolver alguma questão, cartas para começar uma transformação. Se tiver retorno, continue a conversa. Se não tiver, lembre-se que a não resposta já é uma resposta.