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CotidianoDa palmada educativa à violência contra a criança

Da palmada educativa à violência contra a criança

Não é raro encontrar alguém, nascido no século XX, que não tenha sido educado à base deste tipo de corretivo

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Fabiana Guerrelhas, terapeuta analítico-comportamental (Foto: Arquivo Pessoal)

Quando eu tinha uns 8 anos, vivi uma situação que, vez ou outra, aparece em
minha memória. Era domingo e estávamos na casa dos meus avós maternos, reunidos
em família. Eu usava uma calça vermelha. Acho que era Dia das Mães. Estava brigando
com meu irmão, não sei o porquê, e gritava, histericamente, com minha vozinha
esganiçada da época. Meu pai me pediu para eu ficar quieta várias vezes, mas eu
continuei choramingando. De repente, ele veio em nossa direção, furioso. Meu irmão
saiu correndo e eu levei várias palmadas na bunda. Fiquei tão surpresa e tão assustada
que fiz xixi na calça vermelha e parei imediatamente de gritar. Meu pai nunca havia me
batido, essa foi a primeira e a única vez. Segui minha infância brigando com meu irmão
e, provavelmente, tenha irritado as pessoas, mais de um milhão de vezes, com a mesma
vozinha de maritaca. 

Não é raro encontrar alguém, nascido no século XX, que não tenha sido educado
à base deste tipo de corretivo. Em minha família, típica brasileira de classe média,
questões de ordem e disciplina eram resolvidas com instruções claras e explicitação
direta das regras e das consequências de nossos comportamentos. Porém, embora
nunca tenha havido violência, nem sério dano físico, rolavam umas chineladas e tapas,
principalmente por minha mãe, que era quem tocava o batidão da vida e quem tinha que
rebolar para dar conta da casa, de seu trabalho e administrar a rotina de dois meninos
e uma menina, se locomovendo de ônibus, no caos da cidade de São Paulo. 

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Eu era uma criança boazinha e obediente e, por isso, quase não apanhava, já
meus irmãos, mais encapetados e indisciplinados, têm no currículo um bom número de
surras e afins. No dia em que levei a palmada do meu pai, devo tê-lo irritado muito e,
provavelmente, ele não estava em um bom dia. Ele era bravo, mas muito amoroso e
sempre me tratou como uma princesinha. 

Lembrei dessa história corriqueira, quando soube do caso da menina carioca
Ketelen Vitória, de 6 anos, que foi torturada e agredida, durante três dias seguidos, pela
mãe e pela madrasta e que morreu no hospital em decorrência dos traumas. Uns dias
antes, o menino Henry Borel, de 4 anos, também do Rio de Janeiro, morreu depois de
ser torturado pelo padrasto. As agressões ao menino eram consentidas pela mãe. Em
2014, no sul do país, Bernardo Boldrini, foi morto aos 8 anos com uma superdosagem
de medicamentos e enterrado numa cova aberta, em um matagal, em um projeto
macabro, arquitetado pelo pai e pela madrasta. No ano anterior, em Ribeirão Preto,
Joaquim, de 3 anos, morreu depois que seu padrasto lhe injetou altas doses de insulina.
Seu pequeno corpo foi descartado em um rio. A mãe está sendo processada por
homicídio culposo e aguarda o julgamento em liberdade. E na semana passada, em São
Paulo, Gael de 3 anos foi agredido pela mãe até a morte. Andréia, 37 anos, foi presa
em flagrante por homicídio qualificado. 

Essas terríveis notícias, além de me lembrarem do episódio da calça vermelha,
me fizeram refletir sobre os possíveis motivos dos pais chegarem ao ponto de matarem
seus filhos. Será que são perturbados emocionalmente? Será que perderam a mão ao
estabelecerem as tais medidas disciplinares, ainda, tão comuns, embora
desaconselhadas por qualquer psicólogo, educador e pedagogo que se preze?
Primeiro ponto: o ato de bater em uma criança está ligado a questões culturais,
características dos cuidadores e competência parental. Importante dizer que, a partir do
momento em que se assume a responsabilidade pelo cuidado de um ser incapaz – um
filho ou enteado, por exemplo – passamos a ter deveres legais de proteger essa pessoa
de qualquer dano ou prejuízo físico e psicológico. 

Segundo ponto: profissionais da Pedagogia, da Educação e da Psicologia são
unânimes em afirmar que bater em uma criança não ensina nada e só pune o
comportamento indesejado temporariamente. A palmada que levei do meu pai pode ser
usada como exemplo, já que me fez parar de aborrecê-lo somente na hora, mas eu
continuei gritando com meu irmão. Além disso, a medida não me ensinou a resolver
nossos embates de maneira mais habilidosa, pois os conflitos permaneceram durante
toda a nossa infância. Não foi o nosso caso, ainda bem, pois havia outros recursos
utilizados em nossa educação, além das palmadas, porém o desenvolvimento forjado
por maus-tratos (abuso físico, psicológico, sexual ou negligência) induz mais violência
e pode ser responsável por diversas psicopatologias. 

Terceiro ponto: ninguém nasce sabendo ser pai e mãe. Muitos usam o castigo
físico, porque não conhecem outra maneira de educar. Minha querida orientadora de
mestrado, a Professora Doutora Edwiges Silvares, titular do Instituto de Psicologia da
USP, São Paulo, lá nos idos dos anos de 1990, foi pioneira na prática de Orientação
Parental. Ela levava seus alunos em escolas da periferia, identificava “crianças
problema” e ensinava a seus pais habilidades para criá-los. Esse tipo de trabalho
diminuía muito os problemas comportamentais infantis e, consequentemente, a
violência contra as crianças envolvidas nos estudos. Soube, outro dia, em uma matéria
da Folha de S.Paulo, que, na USP de Ribeirão Preto, há um programa para ensinar pais
a controlarem emoções. O programa é uma iniciativa que visa a prevenção da violência
psicológica contra crianças. 

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Obviamente, há uma grande distância entre as palmadinhas corretivas e os
maus-tratos infantis. Mas quando tomamos conhecimento desse tipo de aberração, em
que mães e pais são violentos com seus filhos a ponto de matá-los, precisamos trazer
a discussão à baila. 

Como mãe, custo a entender a possibilidade de ferir um filho neste nível, embora
a maternidade tenha me provocado sentimentos inéditos, momentos de raiva intensa e
alguns descontroles. Só nós sabemos o quanto uma criança pode ser capaz de tirar
seus responsáveis do sério. Quando minhas filhas eram pequenas, ouvi uma amiga
dizer ironicamente, que alguns momentos eram a hora do arsênico – os pais ficam tão
perdidos que não sabem se tomam ou dão o veneno. Brincadeira que expressa plena
incompetência e extremo desespero. Mas daí a assassinar ou ser cúmplice de um
assassinato de uma criança, que deveria ser cuidada e protegida por você, são outros
quinhentos. 

Em maio comemoramos o Dia das Mães, cumprimentei a minha e recebi muito
carinho de minhas filhas. Ketelen, Henry, Bernardo, Joaquim e Gael não estavam mais
aqui para aproveitarem o dia com suas mães. Mas mesmo se estivessem, será que elas
mereceriam as homenagens?

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