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CotidianoDecretei que agosto é mês para reviver e refletir sobre meus lutos

Decretei que agosto é mês para reviver e refletir sobre meus lutos

Juntar Manuel Bandeira, samba, tremoço e cerveja com uma comida típica portuguesa me fez lembrar que, aquele dia, era o 18º aniversário de morte do meu pai

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Fabiana Guerrelhas, terapeuta analítico-comportamental (Foto: Arquivo Pessoal)

Era um domingo comum, despretensioso, eu não tinha nenhum compromisso além de
correr pelo bairro, ler o jornal e um livro qualquer e cozinhar para a família. Enquanto corria,
escutei um podcast bem bacana da revista “Quatro cinco um (a revista dos livros)” sobre a vida e
obra de Manuel Bandeira. Segundo o entrevistado, o escritor fazia poesia para aprender a morrer,
já que tinha tuberculose que, na época, era uma doença fatal. Apesar de ter vivido muitos anos,
ele achava que tinha uma vida provisória, e isso fez com que a morte fosse tema recorrente de
muitos dos seus poemas. Me emocionei ao ouvir um trecho de “A morte absoluta”, que fala da
angústia ligada ao desaparecimento da pessoa e do completo fim da existência de quem morre.  

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O cardápio do dia era um cozido feito com frango, carne, linguiça portuguesa, legumes e
grão de bico, um prato colorido e aromático, temperado com lembranças de família. De aperitivo,
tremoço e cerveja, embalados por uma sequência de sambas clássicos. O cheiro da comida
perfumava a casa, a música entrava por meus ouvidos e algumas canções se engasgaram na minha
garganta. Andava tristonha naqueles dias, mas não reconhecia o motivo. Quando tocou “Espelho”,
de Diogo Nogueira, meus olhos transbordaram e eu entendi o que estava me causando o aperto
no peito. A letra, linda, é uma homenagem do Diogo ao seu pai:  

“Êh, vida boa, quanto tempo faz (…). Num dia de tristeza, me faltou o velho, que falta,
lhe confesso, que ainda hoje faz”.  

Juntar Manuel Bandeira, samba, tremoço e cerveja com uma comida típica portuguesa
me fez lembrar que, aquele dia, era o 18º aniversário de morte do meu pai. Com os sentimentos
que apareceram, decretei oficialmente que agosto é um mês para reviver e refletir sobre meus
lutos. É um mês mexido, pois tem também o Dia dos Pais e é o mês do nascimento do Antonio
Guerrelhas, do Guerra, do Português, que hoje estaria com 87 anos.  

Ele ficou doente por um bom tempo. Quando morreu, eu tinha 30 e minha primeira filha
havia nascido fazia cinco meses. Viver essas duas experiências, na mesma época, foi um grande
paradoxo. Durante a sua doença e durante toda a gravidez, eu me sentia como uma casa que vai
perdendo o telhado ao mesmo tempo que era responsável por gerar um ser, muito sensível, que
estava morando dentro de mim. Morte e nascimento, experiências opostas. Presença e ausência.
Eu tinha vontade de sumir, de me revoltar, de sair de Ribeirão Preto e voltar para São
Paulo para ficar perto da minha família, de ficar chorando em um quarto escuro e não fazer mais
nada, de deprimir. Ensaiei várias vezes pedir demissão do Hospital das Clínicas, onde,
ironicamente, dava suporte psicológico a pacientes em fase terminal de câncer no aparelho
digestivo, o mesmo que matou meu pai. E, concomitantemente, me maravilhava ao testemunhar,
dia após dia, o incrível processo de desenvolvimento de um novo ser humano. 

Terminado o almoço, fui ler o livro da vez. Não por acaso, tinha acabado de comprar o
último da escritora africana Chimamanda Ngozi Adichie, “Notas sobre o Luto”, um ensaio curto
em que ela conta como tem lidado com a perda do pai, que morreu repentinamente em junho do
ano passado. O relato contém memórias, emoções e toda a transformação decorrente dessa perda
tão dolorosa. “Como as pessoas andam pelo mundo, funcionando, depois de perder o pai?”, ela
se pergunta. Entendo sua questão, sou uma pessoa antes e outra depois da morte do meu pai. Com
ele, morreu em mim a criança inocente, a jovem deslumbrada e algumas crenças infantis. A morte
do pai nos obriga a reordenar nossa posição no mundo, “não é apenas um pai que se vai com a
morte, mas também a posição de filha dele”. 

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Seu luto é recente, o meu já atingiu a maioridade. Se nos classificássemos nas cinco fases
típicas do luto, conforme definiu Elisabeth Kubler-Ross, uma das maiores autoridades em estudos
psicológicos sobre a morte, diria que Chimamanda está vivendo a fase da revolta e eu, a da
aceitação. Sua dor é aguda e, embora eu ainda sofra com a saudade, na maior parte do tempo, a
tristeza dá lugar à ternura. 

A autora também fala sobre um tipo de herança existencial deixada por seu pai, o que me
fez pensar no que há do meu pai em mim: a cor dos olhos, a boemia, a prática regular de esportes,
a valorização dos amigos e um pouco da braveza. 

Ele não sabia cozinhar um ovo, mas era bom de boca. Minha mãe, exímia cozinheira,
reproduziu com esmero toda a culinária aprendida no convívio com seus sogros portugueses. O
cozido daquele domingo, faz parte desse menu e, dizem, estava ótimo. Segundo consta, foi uma
das melhores comidas que já fiz. Meu pai teria se orgulhado. A dor inspira.

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