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CotidianoJá podemos tirar as máscaras, mas estamos ainda mais sufocados

Já podemos tirar as máscaras, mas estamos ainda mais sufocados

Na minha idade, não posso mais tampar os ouvidos nem fechar os olhos e é impossível não ficar aterrorizada ao assistir a cenas de um bombardeio a uma maternidade

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Fabiana Guerrelhas, terapeuta analítico-comportamental (Foto: Arquivo Pessoal)

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Amanheci com uma sensação estranha, mas familiar, um zumbido forte e contínuo no ouvido. Costumava escutar esse barulho depois dos bailes de carnaval, de um show ao vivo ou após ter ficado quatro ou cinco horas numa festa com música muito alta. Foi esse também o som que ouvi quando cheirei lança-perfume uma vez e minha alma saiu do
corpo por alguns instantes. Piiiiiiiiii. 

Meu mundo já foi uma festa boa, barulhenta e perfumada, agora é um ruído incômodo, que lembra o som daqueles aparelhos que medem os sinais vitais. Quando o coração para e o corpo morre, o gráfico do monitor deixa de oscilar mostrando uma linha horizontal reta. E faz esse barulho. Pelo menos é o que aparece nos filmes. Piiiiiiiiii. 

Ainda deitada na cama, depois do ruído, veio a imagem do cogumelo atômico de
Hiroshima e um sentimento de pavor. Lembrei-me de quando eu era criança, tampando os ouvidos durante o Jornal Nacional, pois morria de medo de ouvir que fora declarada a Terceira Guerra Mundial. 

Na minha idade, não posso mais tampar os ouvidos nem fechar os olhos e é
impossível não ficar aterrorizada ao assistir a cenas de um bombardeio a uma maternidade, de escombros misturados com sangue, fumaça e neve, de corpos em sacos plásticos pretos, jogados em uma vala estreita ou de tanques antigos circulando pelas ruas,
obsoletos, mas ainda poderosos. Numa estação de trem da Polônia, carrinhos de bebês foram disponibilizados à espera de mães e filhos refugiados. Imagens chocantes! 

Não há somente mães e crianças na fila de refugiados ucranianos, há animais de
estimação, pessoas de todas as idades e ninguém usa máscara, nem mesmo as loiras lindas que “são fáceis porque são pobres”. Aliás, para que máscara, se todos podem ser bombardeados e as mulheres abusadas? Li que o estupro é uma arma de guerra. 

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Em muitos lugares, já podemos circular sem máscara, não precisamos tanto dos
respiradores e, no entanto, estamos ainda mais sufocados. A crise sanitária foi substituída pela catástrofe humanitária. 

No meio disso tudo, aqui perto, em Jardinópolis, um cão teve seu focinho
arrancado à faca. Tentei reler a Hannah Arendt para ver se entendo a banalização do mal e descobri que a filósofa nasceu no mesmo dia do meu aniversário. Sobre maldade, violência e totalitarismo, não consegui entender mais muita coisa, só confirmar que os homens são ruins. 

Queria ser uma mosca para saber o que os estrategistas da OTAN estão
conversando e não sei se quero mais ouvir as previsões apocalípticas do Harari. Adoro strogonoff, caipirinha de vodca, já li Dostoiévski, mas tenho medo do Putin. Ouvi dizer que está com câncer em fase terminal. E se ele resolver apertar o botão vermelho e levar a humanidade toda junta para o além? 

Ler, escrever, rir de memes idiotas e escutar música me distrai e me diverte, aí
vem o Paulinho Moska e me pergunta: “meu amor, o que você faria se só te restasse esse dia, se o mundo fosse acabar, me diz o que você faria?” Não sei o que responder ao Moska, talvez passasse um tempo no celular fazendo vídeo chamadas de despedida dizendo para as pessoas o quanto eu as amo e tentaria encontrar e abraçar muito forte
quem estivesse ao meu alcance. 

Poderia, também, ficar quatro ou cinco horas tomando cerveja e dançando ao som de uma música muito alta para despistar os barulhos ruminantes que estão dentro da minha cabeça. 

Minha filha adolescente, que tem crises de ansiedade e unhas roídas, pergunta:
“Papai, você vai ter que ir para a guerra?” Ele disse que não. Provavelmente, não. Achei o diálogo surreal e completei a conversa dizendo: “Eu também não quero mais fazer parte de nenhum momento histórico, minha filha. Me abraça aqui e vamos tentar viver nossa vidinha normal. Já marcou cabelo e maquiagem para aquela festa? 

Nesses dois anos de Pandemia me esforcei para olhar o lado cheio do copo. Agora parece que o copo não está mais pela metade, esvaziou. O que é um vírus perto de uma guerra nuclear? Detesto autopiedade e coitadismo, sou bastante esperançosa, mas neste momento qualquer otimismo tem cara de positividade tóxica. Se o lance da hora é mindfulness, atenção plena e foco no momento presente, então não dá para fugir da angústia. Minha Pollyanna interior fugiu. 

Ainda assim, acredito que o amor pode vencer e meus momentos de baixo-astral
não costumam demorar. Com o tempo, a angústia vai sendo dissolvida nas palavras. 

“Em breve voltarei a ter empatia e esperança. Hoje está complicado”, disse o Karnal. É o que também sinto e espero. Por enquanto é só aperto no peito, nó na garganta, pensamentos catastróficos e Piiiiiiiiii!

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Leonardo dos Santos
Leonardo dos Santos
Jornalista formado pelo Centro Universitário Barão de Mauá e egresso da Universidade de São Paulo. Cobriu as campanhas eleitorais de 2016, 2018, 2020 e 2022, e ficou de olho na passagem da seleção francesa por Ribeirão Preto na Copa do Mundo de 2014. E-mail: leonardo.santos@acidadeon.com
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