Eu tive um amor platônico por um psicanalista italiano. Seu nome é Contardo. Ele
faleceu, agora em março, com setenta e dois anos. Uma tristeza! Por incrível que
pareça, ele não morreu de Covid. Embora a gente às vezes se esqueça, morre-se,
também, por outros motivos. No seu caso, foi câncer.
Quando ele já sabia que seu tempo estava acabando, disse para seu filho Max: “Espero
estar à altura”. Morreu com a mesma dignidade com a qual viveu, já que estava pronto
para o que viesse: “comédias, tangos e tragédias”.
Fazia tempo que não o via e estava estranhando sua ausência. Pensei que ele estivesse
de férias ou meio deprimido, em razão da Pandemia. Eu costumava encontrá-lo, toda
quinta-feira, na “Folha de S.Paulo”, e ele sempre me ensinava algo novo sobre a vida.
De vez em quando, tomávamos um café filosófico ou eu dava a sorte de pegá-lo em um
debate ou entrevista. Ele falava sobre amor e sexualidade, sobre os dilemas individuais,
sobre as dificuldades em administrar os desejos e sobre política compartilhava
vivências importantes, sempre misturando psicanálise com arte, cinema, história e
cotidiano.
Eu o conheci há muito tempo e foi amor à primeira vista. Eu tinha uns trinta e poucos
anos e ele, cinquenta e tantos. Não resisti ao seu charme italiano, ao seu jeito sofisticado
e ao seu olhar sedutor. O que ele falava ressoava em mim, além, é claro, de minha
admiração por sua vasta produção intelectual: cerca de mil textos no jornal (o último, foi
um mês antes de morrer), treze livros, uma peça de teatro e uma série na HBO.
Como não se apaixonar por alguém que, no primeiro encontro, diz exatamente o que
você pensa: “mais do que buscar permanentemente a felicidade máxima, (…)
deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia. Ter uma vida
interessante significa viver plenamente, o que pressupõe poder se desesperar quando
se fica sem alguma coisa que é muito importante para você”.
Eu também não acredito nessa felicidade idealizada, como se fosse possível viver sem
sofrimento. Concordo que a boa vida se dá com a valorização de pequenos prazeres e
aceitação das dores e perdas, e que “ser alegre é gostar de viver mesmo quando as
coisas não dão certo ou quando a vida nos castiga”. Esse foi um dos seus mais
importantes ensinamentos.
Fiquei encantada quando soube que ele tinha sido aluno do Lacan e do Foucault, figuras
icônicas da psicologia e da filosofia. Sua tese foi orientada por Roland Barthes, autor do
célebre livro “Fragmentos de um discurso amoroso”. A mistura dessa formação justifica
o fato de ele falar de desejo e amor com tanta propriedade. Propriedade que não é só
acadêmica, já que ele foi casado nove vezes. Dizia que quando se apaixonava “não
queria ver a pessoa só de vez em quando” e que precisava fazer sexo todos os dias,
“senão não dormia direito”.
Contardo escolheu o Brasil para morar, entre outros motivos, por causa dos amigos que
fez por aqui. Disse, em uma entrevista, que a amizade é uma virtude. Resumindo, ele
analisou brilhantemente este conceito, por meio da leitura de filósofos ao longo da
história, listando os critérios que fazem uma relação ter essa qualificação: amigos têm
a mesma noção de “bem”, atravessam juntos situações difíceis, compartilham
momentos de lazer, podem ser mais importantes que pessoas das relações conjugais e
familiares, têm afinidades, compartilham a alma e segredos, experimentando
sentimentos e emoções intensos. São cordiais e não precisam ser parecidos e terem
exatamente a mesma ética. Para ele, amizade é descanso e salvação. Concordo
plenamente.
Em 2005, contou que tinha uma paixão inconfessável pela música sertaneja. E não é
que eu também tenho? Se pensarmos bem, algumas de suas frases caberiam em uma
letra de sofrência ou no para-choque de um caminhão: “se você encontrar alguém
disposto a caminhar na chuva do seu lado, não fuja, molhe-se” ou “o amor ideal precisa
de distância”.
Em um daqueles encontros de quinta-feira, ele me apresentou o filme “À Deriva”, de
Heitor Dhalia, estrelado por Débora Bloch, Camilla Belle, Laura Neiva e Vincent Cassel
(outro europeu que ficou um tempo por aqui). A trama se passa em Búzios, nos anos
oitenta, e retrata uma crise conjugal envolvendo adultério, mas que aborda,
principalmente, a transformação da menina em mulher. Contardo me disse que, “se
Freud assistisse a À Deriva, ele dedicaria ao filme um texto magistral”. Sua análise me
fez refletir sobre meu próprio processo de transformação e minha relação com meu pai.
Eu não sou psicanalista, mesmo assim, ele me fez absorver vários conceitos da
psicanálise e perceber que o diálogo entre pontos de vista distintos é absolutamente
possível. Uns acham que ele colocou o Brasil no divã, outros, que ele não tem lugar de
fala para analisar o Brasil por não ser brasileiro. Em minha opinião, atualmente, ele vinha
traduzindo muito bem um sentimento geral das pessoas de nosso país: “enquanto as
ruas pegam fogo, é difícil escrever sobre o amor”.
Quando eu ainda era uma jovem terapeuta, nos correspondemos por cartas. Não me
esqueço de uma frase importantíssima para minha formação: “bata um papo com dois
ou três moradores de rua, aproxime-se, deixe-os falar o que, em geral, ninguém escuta
(…). Se você conseguir escutar, digamos, uma hora, sem que o discurso (quase sempre
desconexo) abale sua atenção, e se não recuou instintivamente quando eles passaram
uma mão encardida na sua camisa ou direto no seu braço, passou no teste. Repita, se
possível, com outras amostras: pacientes psiquiátricos, terminais e pessoas assoladas
por um luto.”
Também me disse, certa vez: “durante sua prática clínica encontrará pacientes que não
melhoram, agarrados a seus sintomas mais dolorosos como um náufrago a um salvavidas;
viverá momentos consternados em que as palavras que lhe ocorrerão parecerão
alfinetes de brinquedo agitados contra forças imensamente superiores. Nesses
momentos (que, acredite, serão frequentes) será bom lembrar que você sabe mesmo
(e não só pelos livros) que sua prática adianta”.
Sim, o Contardo Calligaris, esteve à altura. Não o conheci pessoalmente, mas sinto
como se tivesse morrido alguém de meu convívio. Tenho certeza de que há muitas
pessoas vivendo plenamente a dor da perda e já sentindo a sua falta. As frases citadas
nesta minha brincadeira literária foram colecionadas durante muitos anos e podem ser
encontradas em seus textos, livros e entrevistas. E muito do que escrevo aqui, nesta
coluna, tem as palavras do Contardo como inspiração.