A palavra “fantasia” se relaciona à imaginação, ao sonho, ao fetiche e à fuga da
realidade. Quando fantasiamos, criamos imagens mentais, retornamos ao passado,
passeamos pelos desejos, vivemos o impossível e representamos outros papéis.
Já me fantasiei de melindrosa, Mulher-maravilha, Liza Minelli no filme Cabaret,
Amy Winehouse, palhaço, havaiana, médica, bruxa, Malévola, Chiquinha do Chaves,
gueixa. Por algumas horas, eu experimentei viver todas essas vidas, a maioria delas, muito
distante da minha, e homenageei figuras que eu admiro e respeito.
O Carnaval é uma época bem propícia para isso. Este ano ele foi cancelado
oficialmente, só que não. De uma forma ou de outra, a folia está rolando. Parte porque o
povo tem de se virar e fazer a economia informal acontecer, parte porque o turismo e o
mundo do entretenimento têm de sobreviver, ou simplesmente porque muitos não
conseguem mais viver tolhidos de fantasia, de liberdade e sem esse tipo de alegria. Tem
um monte de gente por aí cheia de brilho, empetecada com adereços ultra coloridos e
maquiagens exageradas, se arrepiando ao som de alguma bateria e desejando, de verdade,
“que a paz vença a guerra e que viver seja só festejar”.
Embora muitos reprovem ou simplesmente não suportem esta festa, não se pode
negar a dimensão do evento na vida de qualquer brasileiro. A começar pelo fato de ser
um feriadão, no qual nada funciona direito. Não tem escola, não tem banco, não tem
serviço público aberto. A data passou a ser um importante marco cultural de proporções
astronômicas que caracteriza nossa nação.
Carnaval é uma brincadeira séria com múltiplos significados e funções na
sociedade e pode ser analisado por várias perspectivas. Sob o viés antropológico, é um
momento em que o rompimento de regras, principalmente morais, costuma ser permitido.
É também a oportunidade dos indivíduos de diferentes classes sociais pertencerem a um
mesmo grupo. Nas ruas, estão todos enfeitados com a mesma purpurina, dançando no
mesmo ritmo, cantando o mesmo Ziriguidum.
Pensando cá com meus botões de lantejoula, me indaguei sobre os motivos pelos
quais as pessoas se transformam tanto neste período. Por que será que, durante alguns
dias do ano, assumimos tantas personagens diferentes? O que nos faz adentrar neste portal
em que se pode realizar tantos desejos? O que pode haver por traz da escolha do figurino?
Para onde vai o pudor quando se ousa diminuir o tamanho da saia e aumentar o decote?
O que faz um homem seguro de sua opção sexual usar roupas e acessórios femininos? O
que acontece na cabeça de mulheres, mesmo as mais conservadoras, ao aceitarem beijar
desconhecidos?
O comportamento muda conforme o contexto e de acordo com seus efeitos. Deste
modo, o entendimento do clima de “liberou geral” me parece óbvio. Se a sociedade, que
costuma ser repressora, deixar de punir determinadas condutas, comportamentos
geralmente suprimidos irão aparecer. Durante o ano todo, se uma mulher resolve sair na
rua com os seios de fora será punida por estar cometendo um ato obsceno. Porém, no
Carnaval, ela poderá desfilar seminua em público e não será julgada por isso.
Eu mesma coleciono em minha memória pequenas transgressões do tipo “vou
beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval”, situações que dificilmente
aconteceriam ordinariamente.
Há muitos incentivos aos excessos carnavalescos. Grandes empresas de bebidas
patrocinam o Carnaval e existe um número enorme de sambas enaltecendo o consumo,
como o clássico, “as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar, eu passo a
mão na saca, saca, saca-rolha e bebo até me afogar”.
Durante esses dias a farra é intensa, o fato de as portas do paraíso se fecharem na
Quarta-Feira de Cinzas pode explicar parcialmente tantos pés enfiados na jaca ao mesmo
tempo. A compulsão pode estar relacionada ao período de privação que está por vir.
Tenho tido, nos últimos tempos, uma relação conflituosa com o Carnaval. Festeira
que sou, gosto da bagunça, da criatividade, da ousadia, da euforia e da união entre as
pessoas pulando juntas num mesmo cordão. Frequentei bailes deliciosos em clubes do
interior, ganhei concursos de fantasia e tenho ainda, na ponta da língua, um vasto
repertório de marchinhas e sambas-enredo. Participei de blocos de rua e desfilei em escola
de samba. Mas ando com certa preguiça do agito e com vontade de entrar no bloco dos
que estão comemorando o fato da Pandemia ter jogado água, e não confete, nesta grande
festa popular.
Mas, se passar por mim um samba bom e privê, é bem provável que eu abra meu
baú de adereços e siga atrás do bloco. Além disso, nunca vou renunciar às minhas
fantasias, sendo elas em forma de trajes ou devaneios. Elas estão guardadas num baú
muito especial que eu acesso quando quero ousar, experimentar outras vidas, sonhar com
o que não posso ter, reviver o que já acabou ou quando preciso escapar temporariamente
da realidade, pois é impossível enfrentá-la o tempo todo. E as suas fantasias, onde estão?