“O meu cachorro só falta falar.” Dez entre dez tutores de pet já fizeram essa observação ao menos uma vez na vida. Apesar de amplamente reconhecida e estudada, a capacidade de comunicação, de entendimento e uso da linguagem corporal pelos cães segue causando espanto e sendo motivo de admiração.
“Eu e a Pandora conversamos o dia inteiro”, disse a gestora de recursos humanos Laylla Lopes Roque, 23 anos, sobre a interação cotidiana com sua pet da raça Pastor de Shetland. “Ela me entende, faz diversas coisas e fala com o olhar. Quando está triste, por exemplo, ela pede colo com o rabo para baixo e os olhos para cima”, disse.
O publicitário André Felipe de Castro, 49 anos, também diz “falar de igual para igual” com o Obi-Wan e a Lupita (cães da raça Jack Russell Terrier). “Eu falo coisas como: ‘tá indo aonde?’, ‘volta aqui’, ‘agora não, estou trabalhando'”, conta. “Estou trabalhando de casa. Durante o dia, eles ficam próximos do meu local de trabalho e se deitam. Eu acabo minha última ligação do dia e, imediatamente, os dois se levantam e pedem para brincar”, diz.
Segundo Castro, Obi-Wan põe a orelha para trás quando está sentindo algum desconforto. Já a Lupita é mais vocal – e late para demonstrar o que está sentindo ou pedir alguma coisa. “A Lupita boceja quando quer alguma coisa”, lembrou. “E diferente de outros cães, o Obi-Wan rosna para pedir carinho.”
Nos últimos dez anos, pesquisas mostraram que a conversa de Laylla com Pandora e o tête-à-tête de Castro com Obi-Wan e Lupita podem ser muito mais do que exageros de mães e pais de pet. Entre esses estudos, o que teve mais repercussão foi o realizado na Universidade de Sussex, na Inglaterra.
“O estudo constatou que os cães têm a ativação da região cerebral e o entendimento compatível ao que foi pronunciado por seus tutores, independentemente da entonação que esses tutores utilizaram durante a comunicação. Ou seja, os cães compreenderam os significados das palavras, muito além de qualquer instinto decorrente de entonação”, disse Ricardo Menezes, veterinário, supervisor de capacitação técnico-comercial da PremieRpet. “Pensando nisso, podemos sugerir que os cães possuem comportamentos herdados geneticamente, mas que são pautados por linhas de pensamento, cognições e até pensamentos contínuos. De tal forma que têm a compreensão do que fazem e para que fazem”, completou o veterinário.
Para o neurocientista Fabiano Abreu Agrela Rodrigues, “é narcisismo acreditar que somos superiores a outras espécies”. “Os cães não são mais burros. Eles têm a inteligência suficiente para sobreviver. Olhando para trás, na época das cavernas, os lobos entenderam que se juntar aos homens era inteligente do ponto de vista da sobrevivência. E, por outro lado, os homens também se juntaram aos lobos por questão de sobrevivência”, falou.
Adestradores
Pandora e a dupla Obi-Wan e Lupita têm adestradores – profissionais que potencializam o desenvolvimento dos cães, mas que, principalmente, observam o talento natural dos pets para a comunicação. Luciano Pereira, adestrador da Pandora, conta que alguns cães têm um nível de comunicação direta. “Quando o cachorro quer comida, por exemplo, ele vem até o dono, raspa a perna do dono, late, senta em frente ao dono e fica olhando”, enumera. “Quando ensinados, essa comunicação torna-se mais sofisticada. O meu cachorro, por exemplo, toca um sininho para pedir comida.”
Pereira observa ainda como os cães comunicam a vontade de dormir “Os cães vão para cama com um osso, brinquedo ou cobertor. O meu vai e rosna com um ossinho na boca. Na maioria das vezes, fazem isso nos mesmos horários que os donos vão para a cama.”
Fernando Gurjão Lopes, 63 anos, é o adestrador de Obi-Wan e Lupita. “Hoje, os cães estão dentro das casas. Entender como se comunica um cachorro é fundamental. Todos os sinais são importantes”, diz Lopes. “Para mim, os cães se comunicam principalmente pela postura. Se levantou a orelha para frente ou se arrepiou, ele está sofrendo alguma ameaça ou está atento a algo. Já se ele está feliz, pode ficar de barriga para cima ou levantar a cabeça.”
Sem comunicação
A veterinária e comportamentalista Kátia de Martino afirma que a comunicação dos cães é muito complexa: “Os tutores acham que conhecem os cães, mas será que conhecem realmente a comunicação que precisam ter com eles? É na falta de entendimento entre tutores e cães que acontecem os problemas”.
“Hoje, depois de tantos mil anos de domesticação, ainda existem problemas de entendimento. Os nossos cães estão muito mais próximos da gente. Vivemos em espaços menores, eles frequentam nossas camas, nossos sofás. Ainda assim, existem questões não resolvidas nesta comunicação.”
Katia afirma que o ruído na comunicação com os cães está na tendência de humanizá-los em demasia. “Meus cães são meus filhos, mas eles têm necessidades especiais. Eles precisam farejar, correr, brincar, cavar… Se a gente não der o que eles precisam, os cães se tornam medrosos, inseguros, latem o tempo inteiro e criam muitos problemas”, disse.
“Assim como as crianças precisam frequentar creches para aprender a usar a linguagem, os cães precisam de um tempo com a ninhada, perto da mãe, para aprender a linguagem dos cães. Quando pegamos cães recém-nascidos e tiramos de perto da ninhada, estamos fazendo um desserviço e interrompendo um processo de aprendizagem”, finalizou.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.