O consumo de carnes procedentes da agropecuária industrial e intensiva pode mudar a composição genética da flora intestinal.
Esta é a conclusão de um estudo desenvolvido pelo Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP São Carlos que utilizou inteligência artificial e aprendizado de máquina na análise gênica das bactérias do sistema digestivo.
O estudo compara as floras intestinais de diferentes tipos de alimentação, incluindo dados atuais e da era pré-industrial. Os resultados apontam para uma maior quantidade de bactérias com genes de resistência a antibióticos nos consumidores de carnes procedentes da agropecuária industrial e intensiva, ou seja, produzidas em larga escala e para fins comerciais. Isso foi verificado tanto para quem adota uma dieta onívora (variada) quanto cetogênica (com limitação de carboidratos e maior consumo de proteína e gordura).
A pesquisa acende o alerta para o uso de antibióticos na pecuária como fator para o surgimento de superbactérias, que conseguem resistir ao tratamento mesmo com o uso de uma grande quantidade e variedade de antibióticos.
Jonas Coelho Kasmanas, estudante de doutorado do ICMC e da Leipzig University e autor da pesquisa, recebeu uma premiação da Helmholtz Association of German Research, a maior organização científica da Alemanha, por sua tese Analysis and Classification of Human Microbiomes: detection of bioindicators and optimization through machine learning, que contou com apoio do Cepid-Cemeai.
O estudo se dedicou a analisar a influência da alimentação no chamado microbioma intestinal, formado pelo conjunto dos microrganismos ali presentes e o ambiente em que estão inseridos no caso, o trato digestório. “O microbioma intestinal humano é muito rico, e influencia diretamente a nossa saúde”, explica Kasmanas ao Jornal da USP, mencionando a existência de estudos que associam problemas psiquiátricos e certos tipos de câncer a este microbioma.
Os dados de biologia molecular são naturalmente muito complexos e a análise de um único genoma é bastante complicada. “É ainda mais desafiador estudar um microbioma, que é composto de múltiplos genomas de diversos vírus e bactérias, cada um com seu material genético. Para se ter uma ideia, possuímos em nosso corpo mais genes de bactérias do que genes humanos”, comenta o pesquisador. Para driblar essa dificuldade, o estudo utilizou Inteligência Artificial e aprendizado de máquina para armazenar e processar as informações das centenas de amostras analisadas.
A pesquisa buscou investigar a presença ou ausência de genes específicos para diferenciar o microbioma dos indivíduos pesquisados. Outro objetivo era avaliar a possibilidade de manipular essa estrutura para otimizar a saúde das pessoas, com potencial terapêutico e diagnóstico.
“Partimos da hipótese de que as dietas modernas que incluem carne e agricultura comercial podem potencialmente estar ligadas a uma maior exposição a bactérias que foram submetidas a antibióticos”, explica Kasmanas. Isso também estaria relacionado com o desequilíbrio do microbioma intestinal e com a presença de microrganismos resistentes a antibióticos, como as superbactérias.
A fonte principal dos dados utilizados no estudo foram repositórios públicos, que são bancos amostrais disponíveis ao redor do mundo. Depois da coleta, as informações das amostras foram padronizadas e selecionadas seguindo critérios como idade, condições de saúde, país de origem e a dieta alimentar adotada pelo paciente, como onívora, vegetariana, vegana ou cetogênica.
Amostras de fezes humanas fossilizadas também foram selecionadas para integrar a pesquisa, para possibilitar a comparação entre a alimentação contemporânea e a pré-industrial.
Após a reconstrução dos microbiomas com algoritmos de aprendizado de máquina e análise de dados, as bactérias presentes nas amostras foram identificadas a partir de seus genes e catalogadas de acordo com a resistência a fármacos.
A comparação entre as amostras mostrou que pessoas que comiam carne, como onívoros, que consomem todos os tipos de alimentos, e cetogênicos, que ingerem pouca quantidade de carboidratos e muita gordura, apresentavam maior quantidade de bactérias com genes de resistência microbiana quando comparadas a adeptos de dietas baseadas em vegetais. Também foi encontrada similaridade entre os genes das amostras fossilizadas e das vegetarianas, o que aponta para uma potencial aproximação entre essas dietas.
Caminhos para evitar um desastre maior
Bactérias que passaram por mutações e são resistentes aos antibióticos disponíveis acabam prosperando e se multiplicam, ao passo que novos antibióticos não são desenvolvidos na mesma velocidade.
Segundo o especialista, os resultados do estudo são preliminares, mas é possível encontrar conclusões importantes para reavaliar a produção alimentar, como a relação entre o consumo de carnes de origem industrial e a maior tendência à resistência de microrganismos. “Sabendo desses dados, é preciso repensar a maneira como fazemos a agropecuária e o uso indiscriminado de antibióticos em animais para consumo e de pesticidas na agricultura”, comenta.
Kasmanas reforça que a resistência microbiana já é uma questão de saúde pública relevante. As superbactérias, que evoluem para driblar o mecanismo de ação dos antibióticos convencionais, causam milhares de mortes no mundo e a tendência é que esse número aumente cada vez mais nos próximos anos.
Um estudo publicado na revista The Lancet indicou que 1,2 milhão de pessoas morreram em decorrência de superbactérias em 2019 e, se nenhuma ação for tomada, a projeção mundial para 2050 é de 10 milhões de mortes por ano, superando o câncer, a aids e a malária. Alguns especialistas se referem ao fenômeno como a “pandemia das superbactérias”.
“É um problema grave que precisa ser encarado como tal. Se há um indicador que a exposição às dietas atuais baseadas em produção industrial acentua o perigo, é urgente redesenhar o modo de produção alimentícia e conscientizar a população sobre o uso excessivo e inadequado de antibióticos, seja na agropecuária ou para tratamento pessoal”, diz.
A ciência da computação e a microbiologia precisam ser aprimoradas para permitir uma análise de dados mais adequada nos assuntos de metagenoma. Kasmanas espera que a pesquisa incentive mais cientistas a estudarem o tema e, principalmente, que sejam realizados novos estudos com bancos de dados ainda maiores para reforçar as conclusões. “Precisamos aumentar a escala de análise para tomar atitudes concretas frente a essa questão.”
*Com informações da USP.