SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma vacina com tecnologia semelhante à usada na imunização contra Covid-19 está sendo testada em centros de pesquisa brasileiros para prevenir a infecção pelo HIV, o vírus causador da Aids. A pesquisa está na fase três, quando são realizados testes em seres humanos. Os resultados saem em dois anos e meio.
Ao mesmo tempo, a Faculdade de Medicina da USP acaba de aderir a um consórcio internacional que busca novas soluções para eliminar o HIV de dentro das células dos pacientes infectados. Outros grupos, como o da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), também perseguem o mesmo objetivo em diferentes projetos de pesquisa.
Após 40 anos dos primeiros diagnósticos de Aids, nos Estados Unidos, a doença que já matou mais de 35 milhões de pessoas no mundo, das quais 350 mil no Brasil, continua mobilizando pesquisadores em busca da cura.
A meta da ONU (Organização das Nações Unidas) é acabar com a epidemia de Aids até 2030, mas as desigualdades de acesso a métodos de prevenção e de tratamento ainda são gritantes, especialmente nos países de baixa renda.
Embora existam avanços importantes na prevenção, tratamento e controle do HIV, os pacientes seguem precisando de terapia antirretroviral contínua e correm o risco de agravamento do quadro de saúde e de morte caso haja interrupção. Sem contar o estigma que ainda circunda a doença.
“Tudo mundo fala em pandemia, pandemia, pandemia. Mas vivemos há 40 anos uma pandemia da Aids, que infecta milhões de pessoas no mundo todo, que causa mortes todos os anos no Brasil e que parece, para muita gente, que acabou. Talvez seja mais fácil eliminar ou controlar bem a pandemia de Covid-19 do que a de HIV”, afirma o infectologista Esper Kallás, professor titular da USP e que lidera pesquisas sobre HIV na universidade.
A USP integra o projeto de vacina contra a Aids chamado Mosaico, patrocinado pela farmacêutica Janssen e que envolve instituições dos Estados Unidos, Europa e América Latina, com mais de 3.800 pessoas. No Brasil, participam centros de pesquisa em São Paulo, Manaus, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Curitiba.
O objetivo é verificar a eficácia de um imunizante contra o HIV tipo 1 e seus subtipos mais frequentes nas Américas e na Europa. Há outro estudo “primo-irmão” do Mosaico sendo feito na África.
Foi a partir da plataforma da Janssen usada no desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 que surgiu a ideia de aplicar a mesma tecnologia para buscar um imunizante contra o HIV, utilizando, inclusive, o mesmo vetor, o adenovírus.
Segundo o infectologista Bernardo Porto Maia, coordenador do projeto no Instituto de Infectologia Emilio Ribas (SP), o adenovirus26, causador de resfriado comum, é alterado em laboratório para não causar a doença.
A esse adenovírus modificado é acoplado um mosaico de estruturas genéticas dos mais diversos subtipos de HIV tipo 1 circulantes nos territórios onde o estudo acontece.
“Quando recebe essa vacina, o adenovírus funciona como um cavalo de Troia para conseguir expor o indivíduo ao HIV. A pessoa não se infecta com o vírus, mas entra em contato com estruturas genéticas dele a ponto de induzir uma resposta de defesa contra esse vírus”, explica Maia.
Na fase pré-clínica do Mosaico, feita com chimpanzés, os pesquisadores chegaram a um grau de eficácia de 67%. Porém, isso ainda precisa ser comprovado em humanos. “Não sabemos se em humanos vai ser igual, menor ou maior. Mas a gente acredita que, pelas características da vacina, vai haver uma eficácia relevante.”
Há outros estudos no mundo buscando uma vacina contra o HIV, mas o Mosaico é hoje o que está em fase mais avançada. Projetos anteriores pouco prosperaram. Um deles, realizado na Tailândia, alcançou eficácia de 31%, considerada muito baixa para uma vacina.
“O HIV tem uma diversidade genética muito grande, que dificulta a criação de uma única estratégia de vacina global. Mas é na vivência de momentos críticos de saúde pública que se tem os maiores avanços de pesquisa. Talvez o HIV se beneficie desse conhecimento que a Covid-19 tem trazido para a ciência e a produção de vacina e de novas tecnologias”.
Outra linha de pesquisa promissora busca novas soluções para bloquear e trancar o HIV dentro das células do paciente infectado e, por meio de engenharia genética, eliminar o vírus e alcançar a cura.
O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP acaba de se unir a uma rede global de pesquisadores que persegue esse objetivo. O consórcio tem investimentos de US$ 26,5 milhões do NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA) por cinco anos. É liderado por três instituições americanas (Gladstone Institute, Scripps Research Florida e Weil Cornell Medicine), que tem colaboradores pelo mundo. No Brasil, o grupo da USP foi o único escolhido.
“A cura é um anseio da comunidade científica desde a descoberta do vírus. Todo mundo tentou e nunca deu certo até aparecer o Timothy Ray Brown [primeira pessoa curada do HIV e que morreu ano passado vítima de câncer]”, diz o infectologista Kallás, coordenador da pesquisa no Brasil.
Brown, que ficou conhecido como “paciente de Berlim”, curou-se após receber transplante de medula óssea de um doador com resistência natural ao vírus da Aids. Depois dele, Adam Castillejo, o “paciente de Londres”, também se livrou do vírus por meio do mesmo método.
Mas como fazer transplante de medula em todo mundo é inviável, várias estratégias de remissão sustentada do HIV começaram a ser buscadas.
Um dos maiores desafios tem sido encontrar formas eficazes de “acordar” o HIV dentro das células e eliminá-lo. Uma pessoa em tratamento antirretroviral tem um reservatório muito pequeno de células com o vírus HIV e elas costumam ficar escondidas.
Segundo Kallás, um diferencial do centro da USP é contar com profissionais que buscam estabelecer um contato mais próximo com a comunidade mais vulnerável ao HIV no Brasil, como homens que fazem sexo com homens, mulheres trans e profissionais do sexo, para participarem dos estudos.
Um das propostas será avaliar a interação do HIV em mulheres trans que fazem uso da reposição hormonal. Segundo algumas teorias, esses hormônios interferem na dinâmica do vírus nesses reservatórios e isso pode dar pistas para novos tratamentos.
Nas pesquisas conduzidas pela Unifesp, a estratégia de tratamento combina dois tipos de medicamentos também com objetivo de acordar o vírus, tirando-o do estado de latência, e matar a célula com o vírus.
No estudo piloto, com 30 voluntários distribuídos em seis braços, três pacientes tiveram a doença controlada, sendo que um deles chegou a ser considerado curado após o HIV desaparecer de suas amostras sanguíneas. Mas no fim do ano passado, ele voltou a apresentar o vírus. A hipótese, ainda sob estudo, é que tenha sido reinfectado por um novo subtipo de HIV.
Segundo o infectologista Ricardo Sobhie Diaz, que lidera o grupo de pesquisa da Unifesp, até o final deste ano será iniciada nova fase dos testes clínicos, com algumas adaptações do tratamento em relação ao protocolo inicial.
Serão acompanhados 70 voluntários, sendo que 60 vão receber o novo tratamento com a combinação de medicamentos e outros dez serão o grupo controle, que vai usar coquetel antirretroviral convencional. “Tivemos mais de 500 pessoas querendo participar do estudo. As pessoas têm vontade de, eventualmente, deixar de tomar remédio.”
Diaz diz que a pandemia atrasou o início dessa segunda etapa do estudo. “Não seria ético trazer pessoas que estão bem [com o tratamento tradicional] para vir todos os meses para um ambiente hospitalar participar de estudo”, afirma.