Sem um critério claro para saber quando a contaminação por Covid-19 será considerada doença do trabalho, empregados e empregadores devem acabar travando uma disputa sobre o tema no Judiciário, na avaliação de especialistas.
Cerca de um ano após a chegada do novo coronavírus no Brasil, órgãos ligados às questões trabalhistas ainda debatem as regras para que, em caso de contágio, a doença seja considerada ocupacional.
Uma nota técnica do Ministério da Economia afirma ser necessário que um perito médico federal declare que a transmissão ocorreu em função ou em local de trabalho.
Isso deve orientar órgãos como o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) na análise de pedidos de benefícios previdenciários, a exemplo do auxílio-doença.
O MPT (Ministério Público do Trabalho), porém, se manifestou de forma contrária: a orientação é que os procuradores presumam que é uma doença ocupacional, já partindo da ideia de que há relação entre o trabalho e a contaminação.
Diante do impasse, especialistas dizem que caberá à Justiça decidir sobre os casos, apesar da dificuldade de se apresentar uma prova inquestionável de que a contaminação foi ou não foi ligada à profissão ou ao ambiente de trabalho.
“Pelo conhecimento médico e tecnologias hoje disponíveis, é muito difícil uma perícia determinar em que momento ocorreu o contágio”, afirma Olivia Pasqualeto, professora de direito do trabalho e previdenciário da FGV Direito SP.
“Isso vai acabar seguindo para o Judiciário e as circunstâncias do caso vão importar, como o fornecimento de máscara e álcool em gel pela empresa. Não existe ainda uma forma de medir a presença de coronavírus num ambiente”, diz.
Em março do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) publicou uma MP (medida provisória) flexibilizando regras trabalhistas diante da pandemia.
Um dos artigos do texto previa que os casos de contaminação pela Covid-19 não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de causalidade.
O dispositivo foi derrubado pelo STF (Supremo Tribunal Federal), argumentando que seria uma ofensa a inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco.
Sem que a MP se transformasse em lei, o Ministério da Economia emitiu a nota técnica para esclarecer o posicionamento do governo sobre a classificação do coronavírus como uma doença relacionada ao trabalho.
“Quando a doença é endêmica, não se presume que a pessoa contraiu o vírus no trabalho. Pode ter acontecido em qualquer lugar, mas tem de provar cada caso”, afirma Fernanda Rochael Nasciutti, advogada da prática de direito trabalhista do BMA Advogados.
“A judicialização vai crescer. Ainda há muitas pessoas em trabalho remoto, mas a discussão vai crescer, por causa da retomada das atividades normais das empresas estar ficando cada vez mais forte”, diz Nasciutti.
Nos casos de atividades altamente expostas à Covid-19, como clínicas e hospitais, haverá, na avaliação das especialistas, uma tendência para que a contaminação seja logo considerada uma doença ocupacional.
A disputa, portanto, deve envolver mais os trabalhos realizados em escritórios, restaurantes ou em diversos locais, como na prestação de serviços.
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em novembro do ano passado, o ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho) Alexandre Agra Belmonte defendeu um modelo semelhante.
“Em se tratando da área de saúde, presume-se que o trabalhador adquiriu a doença em razão do trabalho. Se a atividade não é de risco, a comprovação passa a ser do empregado. Ou seja, ele tem de provar que não adquiriu fora do trabalho, e sim no trabalho, cabendo ao empregador comprovar que tomou todas as medidas de precaução”, disse o ministro.
De acordo com as especialistas, ainda não há previsão de julgamento, por uma instância superior da Justiça, de um caso que aponte a Covid-19 como uma doença ocupacional.
Pasqualeto afirma que as ações desse tema começaram a ser apresentadas entre março e maio do ano passado e que, geralmente, um processo trabalhista demora cerca de dois anos para avançar até uma corte superior, como o TST ou o STF.
Na avaliação de especialistas, a nota técnica do Ministério da Economia já é mais branda que o dispositivo incluído na medida provisória, barrado pelo Supremo.
No entanto, eles criticam a exigência de uma perícia médica em um período em que, por causa da pandemia, essa atividade não está funcionando normalmente -há uma fila de espera por perícias do INSS.
Um dos argumentos do parecer da equipe econômica é que, desde março de 2020, o Ministério da Saúde declarou estado de transmissão comunitária do novo coronavírus em todo o território nacional.
A orientação significa que, a partir daquele momento, não seria mais possível associar cada novo caso de Covid-19 a um caso confirmado anteriormente, dificultando a identificação da maneira de contágio.
A nota técnica, porém, não tem força de lei.
Por isso, na falta de uma base jurídica clara, os casos devem ser decididos na Justiça, pelo menos até que o TST ou o STF julgue uma ação discutindo o enquadramento da Covid-19 como doença ocupacional e apresente um entendimento sobre o assunto.
Até esse estágio, a análise dos processos deverá ser caso a caso. “Acredito que ainda vai ter bastante discussão apesar da nota técnica do Ministério da Economia”, avalia Nasciutti.