ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO
A Vila Prado caminha para se tornar um bairro mais “central”, com adensamento de serviços e comércios, mas ainda não deixou as raízes de pacato bairro residencial, por enquanto.
A verdade é que a Vila Prado sempre fora um bairro misto. Suas origens datam de 1893, quando foi desenhado o loteamento original. As ruas paralelas ao sul da linha férrea delimitavam uma nova fronteira para São Carlos. De essência operária, as residências conviviam com fábricas de sabão, de meia, de móveis, tecelagem e serrarias.
As memórias são revividas entre alguns moradores da localidade. Gente que nasceu, cresceu e desde sempre está por ali. A história ouvida dos pais e avós é repassada. Um olhar mais atento verá o porte de cinema de um depósito de bebidas. Os arcos de um local que fora serraria outrora e atualmente é um prédio dos Correios. Ao conhecer a história do local, vemos o bairro com novos olhos. É a beleza da memória comum.
Memória fotográfica
A fisioterapeuta aposentada Maria Lúcia Derisso, de 68 anos, é uma dessas pessoas que rememoram a Vila Prado antiga. Por memórias próprias, por história oral ouvida na família e pesquisas. Profunda conhecedora da história do bairro, tem a capacidade nata de lembrar datas, detalhes, trazendo à tona as cores que estão gravadas em fotografias preto e branco.
Sua família, de descendentes de italianos, se mudou para o Bela Vista, bairro satélite da Vila Prado, em meados de 1957. A localidade, criada “das costelas” do original, acrescentou dois arruamentos em paralelo à Avenida Sallum, onde “terminava” a Vila Prado.
Das primeiras lembranças de infância, rememora a época em que sua rua Quintino Bocaiuva era de terra.
“O asfalto começou a chegar por aqui em 1962 e eu já estava com sete anos. A nossa rua tinha água encanada, mas não tinha esgoto. Eram fossas instaladas nos fundos das residências”, recorda.
A Vila Prado, na época, era conhecida como “bairro das cabras” ou dos “índios”, apelidos jocosamente dados pelos “burgueses” que viviam na região central da cidade. O primeiro apelido, comentou certa vez a mãe de Maria Lúcia para ela, que vinha do fato de que na rua Dona Ana Prado havia um bando de cabritos soltos. Já o segundo apelido, sugeria não haver civilização do outro lado da linha do trem.
A Vila Prado era bairro operário-industrial. Das andanças pelo bairro, seja nas idas à escola, ao colégio ou levar a marmita para o pai no trabalho, se recorda de diversas indústrias e pequenas oficinas instaladas na localidade.
Memória guiada, um tour pelo bairro
Em entrevista ao acidade on, Maria Lúcia narra pontos do bairro em quase uma visita guiada.
Quem circula “do lado de cá” da linha do trem pode reparar em alguns portais que levam para décadas passadas. Mais distante da Vila Prado, já na divisa com o Gibertoni – vizinho à chácara de Coriolano Gibertoni – havia uma subestação de energia da CPE (Companhia Paulista de Energia), onde o pai de Maria Lúcia trabalhava.
“A gente levava marmita para o meu pai, porque ele trabalhava em turnos. Então a gente ia sempre em dois levar a comida para ele e passávamos por dentro do IPL, a Indústria Pereira Lopes. Na época, a Quintino Bocaiúva prosseguia até a avenida e havia algumas casinhas de operários ali”, conta.
Ainda no caminho cotidiano, havia uma fábrica de meias, onde há hoje um imenso terreno baldio na Avenida José Pereira Lopes, em frente à rua Thomas Edison.
No mesmo quarteirão da fábrica de meias, havia o antigo Bar Navio. A edificação icônica relembrada por Maria Lúcia era de propriedade da família Lazarini, uma das primeiras a ocupar a região da Vila Prado.
“Quase em frente, há um casarão de tijolinhos à vista que era de propriedade dos Giongo. Eles mantinham uma serraria na esquina da General Osório, onde hoje funciona os Correios. Era grande e tinha até um ‘ramalzinho’ de trem que levava as toras de madeira para o galpão”, relata.
Ainda na Vila Prado antiga, logo ao lado da Serraria Giongo, o bairro contava com um moinho, o Vitória, em frente ao que é hoje a Escola Senai. Aquele largo onde atualmente desemboca o Viaduto 4 de Novembro servia de parada para circos e parques.
“[Aquele local] Era um terreno baldio e meu pai nos levava para circos na década de 1960”.
Ainda no “tour” de lembranças pelas imediações, o bairro ainda contava com a Indústrias Colmeia, instalada na rua Dona Ana Prado, em paralelo à linha do trem.
“O bairro contava, ainda, com Tecelagem Germano Fehr, a de móveis perto da linha, oficinas menores e a Sabão Apolo, que ficava onde hoje é a Igreja do Narazeno”, relata.
Antes do surgimento do Estádio do Luizão, nas rebarbas da região da Vila Prado, o bairro já contava, inclusive, com uma fábrica de bolas de “capotão”, de propriedade de um alemão que tinha uma fábrica de artefatos de couro nas imediações.
“Dentre os comércios, eu me lembro dos poucos que haviam. Tinha um armazém mais ou menos onde foi o Supermercado Santo Antônio, e quando passávamos para ir ao Jesuíno de Arruda víamos um açougue também”, afirma.
Onde hoje está o Fórum da Justiça Federal, Maria Lúcia conta haver uma sorveteria, que fazia a alegria da criançada nos períodos de calor na Cidade do Clima.
Na Avenida Sallum, uma preciosidade da Vila Prado da época: o Cine Joia, que atualmente dá espaço para uma distribuidora de bebidas.
“Era nossa diversão o Cine Joia. Mas, quando eu saí da cidade depois de formada, demoliram o local, praticamente ao mesmo tempo em que o Cine Avenida, que era na São Carlos, foi fechado. Ambos eram do mesmo dono”, comenta.
Maria Lúcia reconta história ouvida da mãe da histórica procissão das pedras, em que moradores do bairro foram a pé até a pedreira do atual Cidade Aracy buscar as bases que seria erigida a Igreja de Santo Antônio. “Minha mãe contava isso. Os fiéis fizeram essa mobilização”.
Mudanças no bairro nos últimos 40 anos
Quando formada na faculdade de fisioterapia, Maria Lúcia foi morar na capital paulista. Nas vindas a São Carlos, até a volta definitiva, ela testemunhou as mudanças na Vila Prado.
A Rua Larga, outrora dominada pelas residências, agora tem sede do Judiciário, consultórios médicos, lojas, lojas e mais lojas. A Avenida Sallum, igualmente residencial, passou pelas mesmas mudanças, tornando o dual viário em um minicentro maior do que o comércio de muitas cidades da região.
As mudanças, afirma a moradora, são bem-vindas, pois trazem empregos. O desenvolvimento, porém, pode apagar um pouco da história do bairro.
O encarecimento do terreno leva à elevação dos aluguéis, empurrando os trabalhadores de salários mais baixos para as rebarbas da cidade, processo chamado de gentrificação pelos estudiosos. A Vila Prado, antes democrática, arrisca a ficar um tanto mais “elitizada” e com a história esmaecida.
“São Carlos não é uma cidade que preserva a história, a sua cultura. Não preserva nada. Já visitei cidades com centros históricos, que tem história para mostrar. Tem a Fundação Pró-Memória preservando a estrutura da ferrovia, algo louvável. Mas, o que estamos preservando de cultura e memória da Vila Prado? Pouca coisa está sobrando”, afirma.
Aos poucos, os imóveis mais antigos vão sendo derrubados e dando espaço para condomínios verticais de aparência pasteurizada, com cores branca, bege ou cinza. Joias do bairro, como o palacete que serviu de sede para o clube do IPL, na rua Larga, está praticamente abandonado e se perdendo no tempo.
“Como podemos preservar alguma coisa aqui, para a cultura não se perder. Para que possamos nos lembrar?”, indaga.
Uma resposta à pergunta pode ser conferida nesta próxima reportagem.