BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O Congresso retomou o debate sobre a necessidade de substituição de uma legislação que voltou aos holofotes após a ascensão de Jair Bolsonaro e que é considerada um dos principais entulhos autoritários da ditadura que vigorou no Brasil de 1964 a 1985, a Lei de Segurança Nacional.
Retirada do ostracismo pelo governo do ex-capitão do Exército, a lei passou paradoxalmente a ser usada, também, contra o bolsonarismo, em especial nas investigações conduzidas pelo Supremo Tribunal Federal sobre as manifestações antidemocráticas e, recentemente, na ordem de prisão emitida pelo ministro Alexandre de Moraes contra o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ).
Mais de três dezenas de projetos em tramitação na Câmara dos Deputados tratam de alterações ou revogação da norma, editada em sua última versão em 1983, que seria substituída por uma Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, tese com respaldo significativo entre especialistas.
Apesar disso, há ao menos dois fatores que conspiram contra a articulação.
O primeiro é o histórico de fracassos de ações nesse sentido.
A revogação da lei de segurança é uma ideia discutida desde o fim da ditadura militar, tendo atingido o ápice após a péssima repercussão do uso da norma pela Polícia Federal, em 2000, para enquadrar integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
O governo do tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) montou então uma comissão coordenada pelo ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) Luiz Vicente Cernicchiaro e que contou com a participação, entre outros, do atual ministro do STF Luís Roberto Barroso, então professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
O trabalho da comissão resultou em um projeto de lei que revogava a Lei de Segurança Nacional e introduzia no Código Penal um título específico sobre crimes contra o Estado democrático de Direito, entre eles o golpe de Estado. A proposta foi encaminhada em abril de 2002 a FHC pelo então ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, mas nunca prosperou.
Após isso, houve a retomada da iniciativa nos governos do PT, mas nada, igualmente, foi adiante, até pela consolidação nos meios jurídicos da insignificância da norma à luz de um ambiente democrático.
Sob Bolsonaro, e com o surgimento de movimentos ostensivos de questionamento das instituições e da democracia, a Lei de Segurança Nacional voltou a ser acionada com ênfase.
Dados revelados pelo Painel mostram que em 2020 houve um recorde no número de investigações da PF abertas com base na lei (51), praticamente o dobro em relação a 2019, primeiro ano de mandato de Bolsonaro, e que já havia registrado o maior número de casos dos últimos anos (26).
Entre as apurações motivadas pelo governo houve representação encaminhada à Procuradoria-Geral da República pelo Ministério da Defesa contra o ministro do STF Gilmar Mendes, que havia declarado que o Exército estava “se associando a um genocídio” na gestão da pandemia, e pedidos de investigação feitos pelo ministro da Justiça, André Mendonça, contra jornalistas.
Entre eles um relativo ao colunista da Folha Hélio Schwartsman, pelo texto “Por que torço para que Bolsonaro morra”, publicado após o presidente anunciar que havia contraído a Covid-19.
É nesse contexto que surge o outro dos grandes entraves.
Hoje a Câmara é comandada pelo centrão, que dá sustentação ao governo. Bolsonaro, que é entusiasta da ditadura militar e de próceres do regime, tendo apoiado manifestações contrárias às instituições. Ou seja, é praticante de atos que poderiam ser enquadrados como crimes em uma Lei de Defesa do Estado Democrático.
Projeto de lei elaborado por uma equipe de especialistas e apresentado no ano passado pelos deputados Paulo Teixeira (PT-SP) e João Daniel (PT-SE) estabelece, por exemplo, pena de até três anos de prisão a quem fizer apologia de “fato criminoso ou de autor de crime perpetrado pelo regime ditatorial de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985”. O projeto ainda não teve tramitação na Câmara.
Dentre as manifestações ao longo da carreira política de Bolsonaro, inclusive na Presidência, está a defesa do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, morto em 2015. Ele comandou o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações) do 2º Exército entre 1970 e 1974, órgão que a Comissão Nacional da Verdade apontou como responsável pela morte ou desaparecimento de 45 presos políticos.
A Lei de Segurança Nacional tem 35 artigos e trata, em suma, de crimes contra a “a integridade territorial e a soberania nacional, o regime representativo e democrático, a federação e o Estado de Direito e a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.
Suas versões anteriores, bem mais duras, foram usadas diversas vezes para perseguição a opositores políticos do regime.
O texto de 1983 mantêm trechos genéricos e anacrônicos como o de incitação “à subversão da ordem política ou social” ou a pena de até quatro anos de prisão para quem imputar fato ofensivo à reputação dos presidentes da República, do Supremo, da Câmara e do Senado.
Nome escolhido pelo novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para comandar as principais medidas de alteração jurídica de sua gestão, a deputada Margarete Coelho (PP-PI) se diz favorável à revogação da Lei de Segurança. “Ela não deveria ter permanecido na ordem constitucional de 1988, porque dialoga com um outro tempo, cujo regime identificava parte dos cidadãos como inimigos internos, e nenhum cidadão que reivindique direitos pode ser considerado inimigo do Estado.”
Ela ressalta que as Forças Armadas existem para proteger o país de inimigos externos, “jamais de seus próprios cidadãos”, e que, por isso, entende que a lei deve ser substituída. “Sei que temos boas propostas na Câmara para que criemos uma lei de garantia do Estado democrático de Direito, com o qual eu estaria de acordo.”
Especialistas ouvidos pela Folha foram unânimes em defender a substituição da lei.
“Esse aparato autoritário subsiste no Brasil muito em função de uma transição inadequada da ditadura para a democracia”, afirma Tayara Lemos, professora de direito constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Rubens Beçak, professor associado do Departamento de Direito do Estado da USP, afirma que o cenário nacional e internacional que vem desde o final do século 20 reforça a necessidade de uma nova lei.
“Não tem sentido falar hoje numa lei que pune charge, caricatura, isso é de uma outra época. Já em 1983, quando tivemos essa lei, questionava-se se fazia sentido reeditar a doutrina de segurança nacional dos anos 60. Já era extremamente antiquado. Então, quase 40 anos depois, pretender que aquela lei ainda seja usada? Estamos muito atrasados nessa discussão.”
Fernando Dias Menezes de Almeida, professor titular da Faculdade de Direito da USP, afirma que do ponto de vista político-constitucional há pertinência na maior parte dos casos definidos na lei, ainda que comportando atualizações, mas há pontos incompatíveis com a ordem constitucional vigente.
Ele cita como exemplos os artigos de incitação a subversão da ordem pública e os de calúnia e difamação do presidente da República e outras autoridades, “que, se levados ao extremo, seriam atentatórios à liberdade de expressão”.
Também professor titular do Departamento de Direito da USP, Floriano de Azevedo Marques Neto afirma ser premente a substituição da norma por uma lei de defesa da democracia, nos termos da proposta que tramita no Congresso.
“Não só porque é dos tempos da ditadura. Sua substituição é necessária pois ela partia de uma visão ultrapassada de soberania como um dado titularizado pelo ente Estado e pela nação e não algo pertencente aos cidadãos, típica visão Schmittiana [Carl Schmitt, teórico jurídico nazista].”