SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os militares brasileiros disseram não a Jair Bolsonaro e sim à democracia durante a crise que se desenrolou nesta semana, a maior desde a demissão do ministro do Exército que queria impedir a abertura da ditadura, em 1977.
A avaliação é de Raul Jungmann, 68, que foi ministro da Defesa (2016-18) e da Segurança Pública (2018) do governo Michel Temer (MDB).
Político com grande trânsito entre os setores militares, Jungmann diz que Bolsonaro fracassou em sua tentativa de alinhar as Forças Armadas a seu projeto de poder. “Foi o dia do fico, no caso, ficar com a Constituição, com a democracia”, afirmou.
Ele se refere à posição do general Fernando Azevedo, demitido do cargo de ministro da Defesa na segunda (29) por discordar da exigência de Bolsonaro de maior apoio político das Forças Armadas a seu governo e ao combate às medidas de restrição do contágio da Covid-19.
No dia seguinte, Edson Pujol (Exército), Ilques Barbosa (Marinha) e Antonio Carlos Bermudez (Aeronáutica) entregaram os comandos ao novo ministro, general Walter Braga Netto.
O movimento irritou Bolsonaro, que mandou demiti-los.
Após um dia de tensão, acabaram escolhidos para as Forças nomes acertados com os Altos-Comandos. “As escolhas são a fotografia do fracasso de tentativa de politização. Os comandantes não se disporão a qualquer ideia autoritária”, disse.
Em conversa por telefone, ele avalia que o presidente está perdendo a capacidade de governar, como a crise acerca do Orçamento inexequível em curso mostra.
Alerta para o risco de instabilidade social devido à gravidade da pandemia e teme pelo avanço armamentista no momento em que a bancada da bala foi instalada no Ministério da Justiça.
E diz que a união entre presidenciáveis, que lançaram um manifesto conjunto na quarta (31), é uma imposição ante a realidade de ter de escolher entre Bolsonaro e o PT em 2022.
PERGUNTA – Como o sr. avalia a crise militar desta semana?
RAUL JUNGMANN – Ela decorreu da situação do presidente. De um lado, ele vem enfrentando uma queda progressiva de popularidade. Do outro, ele tem uma relação conflituosa com o Judiciário.
A vitória política que ele teve na eleição das Mesas do Congresso é relativa. O Congresso, o centrão, tem um projeto autônomo que só às vezes coincide com o do Planalto. Isso ficou claro na fala do [presidente da Câmara] Arthur Lira sobre os “remédios fatais” contra o Executivo. O presidente dá sinais de perda de capacidade de exercer suas competências.
Nessa confusão do Orçamento, por exemplo?
RJ – Para mim, é o exemplo acabado. Sempre há negociações. O Orçamento enviado não é administrável. Isso aponta para a precariedade da articulação política, a pouca governabilidade. Por fim, tem a pandemia, fora de controle.
Pelo que foi informado, ele então resolve subir o sarrafo da lealdade e do endosso das Forças Armadas. Nesta hora, vem o não, e ele reage com uma intervenção.
Alguém pode me dizer um motivo pelo qual ministro e comandantes tenham sido afastados? Não estavam cumprindo a Constituição, seus afazeres? Único motivo é político.
Sempre que acuado, Bolsonaro busca associar-se aos militares, usou o “meu Exército” em fala.
RJ – Uso de pronome possessivo para falar das Forças Armadas é coisa de monarquia, onde o rei é Estado. Não é coisa de República, onde elas pertencem à nação.
Veja, o presidente se elegeu na onda da antipolítica e não fez o presidencialismo de coalizão. Como ele vai aprovar o programa dele? Ele apresenta duas forças: os militares e as massas. Mas falha redondamente.
Por isso ele apelou então ao centrão.
RJ – Isso é o reconhecimento de que a política não deu resultado. A posição dele é enfraquecida cada vez mais. Há o inquérito das fake news, chegando a atores do bolsonarismo, os processos sobre sua família, a pandemia.
Esse ano está perdido na economia. Ele busca se reforçar cedendo postos para o centrão. Mas é preciso lembrar que o centrão é pragmático e tem um projeto autônomo.
Como o sr. avalia a saída proposta para a crise, com Braga Netto na Defesa e os novos comandantes? Vê apaziguamento ou só enxugaram gelo?
RJ – Convivi bem com o Braga Netto. É um militar competente. Pelo lado do resultado, as escolhas que foram feitas de novos comandantes são a fotografia do fracasso de tentativa de politização. Eles estão em linha com os comandantes que saem. Não se disporão a qualquer ideia autoritária, e os Altos-Comandos também não.
Eles são a reafirmação do que eu sempre digo: os militares estão indisponíveis para qualquer ato antidemocrático.
Isso na cúpula. E a percepção de que a tropa se bolsonariza à medida em que descemos na hierarquia?
RJ – Não falo pelas Forças, mas tive convívio com elas e isso se perpetua. Acho que há um polo de apoio ao presidente na atual reserva, pessoas mais antigas, com mentalidade de Guerra Fria.
Parece haver algum apoio na suboficialidade, mas a possibilidade ruptura é inexistente. É evidente que há bolsonaristas nas Forças, como há em todo o Brasil. Isso não significa que elas vão romper princípios de respeito à democracia. O que elas ganhariam com isso? Nada.
Ao mesmo tempo, parece difícil essa dissociação no momento em que há milhares de militares no governo, vários ministros, plano de carreira garantindo reajuste, programas sem corte orçamentário, além do apoio de largada a Bolsonaro.
RJ – Começando pela presença dos militares no governo, é responsabilidade do Congresso Nacional de estabelecer essa participação.
Eu acho que militar da ativa, exceto em poucos cargos afins, só pode estar no governo em casos excepcionalíssimos. As Forças são instituições de Estado, representam toda a nação.
Políticos não são dados a assuntos militares, não?
RJ – É inexplicável, temos um poder político que se aliena. Se o poder civil não tem diálogo e projeto, não serão as Forças que irão mudar. Ouço queixas sobre os militares, mas não vejo disposição para liderança e projeto, e sim pouca responsabilidade.
Aí os militares então olham para política e não veem nada. Daí surge a ideia da tutela militar. Mas generais da reserva não falam pelas Forças, e os comandantes que ora saem permaneceram silentes.
A atual tutela militar não começou no governo Temer, que ficou muito fraco após o caso Joesley Batista em 2017? O general Sérgio Etchegoyen era poderoso no Planalto, o sr. foi substituído por um general na Defesa.
RJ – Na criação do ministério, em 1999, existia um projeto político. Entendia que deveríamos ter ministros da Defesa civis, mostrando o controle civil sobre militares. Eu revi essa posição. O controle tem de ser feito pelo Congresso.
Ser militar não é o problema. O secretário de Defesa Jim Mattis era fuzileiro, e ninguém duvida do poder político sobre as Forças Armadas dos EUA.
A questão é outra. Não há uma carreira de analista civil em defesa. Defesa é algo que precisa ser debatido pela sociedade.
Insisto acerca do governo Temer. Não houve espaço para esse crescimento político dos militares, como no caso do tuíte do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, em 2018?
RJ – É um processo que começa na discussão do relatório da Comissão da Verdade, na gestão Dilma Rousseff (PT).
Foi feito um acordo que, pelo que relatam, não foi cumprido. Isso levou a uma reação dos militares, que buscavam ser mais respeitados.
Começa então haver uma presença maior do general Villas Bôas, que é meu amigo e um democrata. Naquele episódio do tuíte [em que pressionou o Supremo a não conceder habeas corpus para evitar a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018] ele buscou se antecipar, e foi uma forma inadequada de se expressar.
Mas eu acredito que, se o resultado fosse favorável ao habeas corpus de Lula, não haveria nenhuma quebra democrática. E também não creio que o Supremo tenha se dobrado a qualquer pressão.
Os militares aceitarão se Lula for candidato e ganhar?
RJ – Se qualquer um ganhar. Lula, Doria, Huck, Mandetta. Os militares deram uma demonstração definitiva nesta crise. Foi o dia do fico, no caso, ficar com a Constituição, com a democracia. Foi exemplar.
E não era inesperado. Na entrevista que eu e Etchegoyen fizemos com Pujol [em novembro], a resposta dele foi cristalina: não queremos fazer política, nem queremos política nos quartéis.
O sr. vê outros riscos para 2022? Em carta ao Supremo, o sr. dizia temer uma guerra civil devido à política armamentista de Bolsonaro.
RJ – Sim, é um problema. Quando o presidente transita o tema das armas da segurança pública para a política e a ideologia, dizendo que tem de armar a população, ele propõe a quebra do monopólio da violência do Estado.
Nenhum Estado democrático consolidado pode permitir isso, você fere o papel constitucional dos militares. E não nenhuma ameaça, interna ou externa. Aí sim me preocupa o risco de termos algo ainda pior do que a invasão do Capitólio nos EUA.
O grupo associado a essas políticas, a bancada da bala, acaba de assumir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública com Anderson Torres. É preocupante?
RJ – Não é nada que diga respeito à pessoa do ministro, mas é preciso ver como o cenário vai se desenvolver. O ministério controla a Polícia Federal, mas eu também acredito que a PF não aceitará qualquer orientação política.
A indicação é privativa do presidente, claro, mas acredito que existam blindagens. O ministro conhece as leis, não acho que irá fazer qualquer obstrução de Justiça.
Voltando aos militares, Braga Netto celebrou o golpe de 1964 na sua primeira ordem do dia. Falta autocrítica às Forças sobre o tema?
RJ – Tivemos um processo de anistia que foi negociado. Houve a Lei de Anistia no Congresso e, depois, sua validação no Judiciário.
Sob o aspecto político, democrático, está resolvido. Mas claro que há demandas de lado a lado. Qualquer ação que queira celebrar [a ditadura] ou busque revisar o que foi estabelecido deve ser desestimulada. Isso, claro, não significa interditar o debate, estudos, a democracia é dissenso, não consenso.
Isso é fruto das condições da transição democrática aqui, que foi diferente da do Chile e da Argentina. Não queremos que esse passado volte.
Para os militares, haverá impacto de longo prazo desta crise e também do desgaste que foi a gestão do general Eduardo Pazuello na Saúde?
RJ – Acho que sim, a começar pelo ineditismo, não víamos algo assim desde 1977.
Chamo atenção para o fato de que nunca houve insubordinação dos envolvidos. Isso fica claro e é duradouro. Foi o dia do não e o dia do fico com a democracia. Muito simbólico que tenha ocorrido um dia antes do 31 de março. Mas isso cria também um trauma.
Mas os militares entraram nessa voluntariamente, não?
RJ – Acho que o apoio a Bolsonaro foi mais um exercício de cidadania, de gente que votou. O sentimento era da população do antipetismo, um subproduto do que foi feito nos governos do PT, e da Lava Jato, que ceifou lideranças e criou um vazio.
As Forças Armadas são parte do povo. Os motores de Bolsonaro foram o rechaço a uma política que se deixou corromper e a insegurança da população.
Continuamos da mesma forma, nas relações público-privadas e no sistema de segurança pública. É preciso rever o pacto constituinte, senão citaremos Carlos Drummond de Andrade: “Sempre no mesmo engano outro retrato”.
O vice Hamilton Mourão era visto como um seguro contra impeachment pelas suas frases golpistas, havia sido punido duas vezes, uma inclusive em sua gestão na Defesa. Hoje é visto com um anteparo democrático no Planalto. O que o sr. acha?
RJ – Minha opinião é de que a lealdade dele está sendo incompreendida e hoje, ele é um vice-presidente que tem compromissos democráticos, independentemente de suas opiniões. Tenho uma relação fraterna com ele.
Como vê essa aproximação dos presidenciáveis que lançaram um manifesto?
RJ – É uma imposição. Individualmente, nenhum deles tem força para romper a polarização restabelecida entre Bolsonaro e o PT.
Ou bem se cria uma candidatura forte e única, ou bem seremos obrigados a ver a atualização da polarização que grande parte dos brasileiros não quer.
Vivemos uma crise política, sanitária e econômica, centenas de milhares pagaram com a vida. Isso é inédito. Se a política não resolver equacionar a crise, ela vai acabar engolida. Em outros impasses, os impeachments de Collor e Dilma, o mensalão, achamos saídas.
Como assim engolida?
RJ – Quando a necessidade vence o medo. Há risco de instabilidade social.
RAIO-X
Raul Jungmann, 68, é pernambucano de Recife. Foi secretário estadual de Planejamento (1990-91). No governo FHC, foi presidente do Ibama (1995-96), ministro de Política Fundiária/Desenvolvimento Agrário (1996-2002). Foi deputado federal de 2003 a 2010, vereador em Recife (2012-14), deputado federal licencigado de 2015 a 2018. No governo Temer, foi ministro da Defesa (2016-18) e da Segurança Pública (2018). Foi do MDB (1974-1979), PCB (1979-1992), PPS (1992-2018). Hoje é consultor.