*Por Vitória Graciotti
O sertanejo como conhecemos mudou muito no decorrer dos anos. Em 1929, quando Cornélio Pires gravou a primeira música caipira, seria inadmissível falar sobre homossexualidade dentro do gênero sertanejo.
Jamais saberemos se, de fato, naquela época não havia nenhum artista gay no meio musical ou se a pressão social da época impedia que os artistas fossem transparentes quanto a seus desejos. Até mesmo porque, quase cem anos depois, esse assunto é discutido, ainda com tabus e preconceitos do público conservador que consome o estilo musical.
A ascensão de cantoras sertanejas LGBTQIAPN+, como Paula Mattos e Luiza Martins, abriu a visão do público para esse tema, mas estas artistas são consideradas exceções honrosas num cenário de pouca abertura às diferenças.
LEIA TAMBÉM
“Boate Azul”, conheça a história do clássico sertanejo
Referência do sertanejo volta aos palcos após 30 anos
Preconceito no sertanejo
A homossexualidade foi tratada de forma enfadonha durante um longo período, com letras carregadas de duplo sentido e preconceito.
Com a era da internet, é cada vez mais comum ver artistas que preferem não expor sua vida pessoal, mas suposições sobre a orientação sexual de alguns artistas sempre retornam, sendo verdade ou não.
Mas isso não é de hoje. No final dos anos 1980, o Brasil conheceu a cantora Roberta Miranda, que, além de cantar sozinha em uma época de duplas, ainda é uma mulher, uma quebra de barreiras inimaginável para época.
Mas, o talento dela muitas vezes ficou em segundo plano e, desde então, o questionamento sobre a sexualidade da cantora veio à tona inúmeras vezes, em maioria, no intuito de diminuir a importância dela na história da música brasileira.
Em meados de 2010, quando o gênero apontou os primeiros sinais de mudança com o sertanejo universitário, ainda encontrávamos músicas como “Bruto, Rústico e Sistemático”, trilha sonora da novela “Paraíso” (TV Globo) e responsável por elevar João Carreiro e Capataz a um sucesso nacional, posteriormente, o próprio João Carreiro, falecido em janeiro de 2024, excluiu dos shows os versos preconceituosos da música.
Tudo na vida, a gente tem que refletir e se colocar no lugar do outro, se fosse hoje em dia, eu não faria. Quando escrevi essa música eu era um molecão e não me coloquei no lugar dos homossexuais
João Carreiro em entrevista ao jornalista André Piunti
Enquanto isso, o cantor Luan Santana recebe, desde sua aparição em 2008, comentários sobre sua sexualidade, principalmente porque foi um dos responsáveis a modernizar o sertanejo, trazendo influências de outros gêneros nas músicas e nas roupas, nos cenários dos shows e nas letras.
Avanços
Ainda nos anos 1990, contra todas as expectativas, o sertanejo abraçou a dupla Rosa e Rosinha, formada por José Renato e Daniel, duas figuras usando chapéu de cowboy cor-de-rosa, cantando letras que apontavam de modo geral relações homossexuais e com comportamentos extravagantes. Apesar dessa entrada no meio sertanejo, tudo não passava de dois personagens caricatos, criados pelos artistas, que são heterossexuais.
Em 2015, um novo movimento expressivo surgiu no sertanejo, o feminejo, liderado por Marilia Mendonça, Simone e Simaria e Maiara e Maraisa, outro cenário improvável para um gênero musical tão conservador. Essa foi a primeira grande abertura para diversificar a música sertaneja.
O que é Queernejo?
Nos últimos anos, é perceptível o surgimento de outro movimento expressivo, o que começou como pocnejo, hoje é intitulado queernejo e representa toda a comunidade LGBTQIAPN+ que consome e produz música sertaneja.
Há diversos artistas que já alcançaram o reconhecimento na música sertaneja e estão empenhados em construir uma carreira, apesar de todos os obstáculos, como Gabeu, que, ao lado de nomes como Chitãozinho e Xororó e Marilia Mendonça, concorreu ao Grammy Latino de 2022, na categoria de “Melhor Álbum Sertanejo”.
Outro exemplo é a cantora e compositora Reddy Allor, considerada a drag queen do sertanejo, que assinou com a Som Livre recentemente e já ultrapassou a marca de 7 milhões de visualizações em suas músicas no YouTube.
O crescimento desse movimento demonstra a pluralidade da música sertaneja, podendo ser produzida e consumida por todo público, desde que haja representatividade, como a de Alice Marcone, primeira mulher trans a cantar sertanejo no Brasil, e Gali Galó, que é não binário transmasculino.
Quem é Vitória Graciotti?
Vitória Graciotti é jornalista especializada em música sertaneja. Em agosto de 2023 passou a produzir conteúdos sobre o gênero em suas redes sociais, trazendo histórias, notícias, coberturas de eventos e curiosidades sobre o estilo musical mais ouvido do Brasil. Manteve o blog “Princesas do Sertanejo” entre 2013 e 2016.