Sinézio estava concentrado ao volante, mas ele não deixava de expressar memórias afetivas do passado. Pelas ruas do bairro Vila Industrial, o sambista falava da infância, falava de um tempo de música, um tempo de diversão. Em um momento, ele apontava para a igreja e comentava sobre a história do padroeiro dos operários, São José – que leva o nome da paróquia -; no outro, ele mostrava, com saudosismo, as ruínas dos antigos curtumes.
“Nós temos três curtumes aqui no bairro, o que é também uma questão operária forte”, ele fazia referência ao Curtume Cantúsio, Firmino Costa e o Campineiro, que são casas responsáveis pelo processamento do couro do gado. “Eles não existem mais, e nem o matadouro”. O que liga essas construções históricas ao samba histórico da Vila Industrial é apenas um: o boi. “Havia ruas conhecidas pela boiada, eles vinham a pé, iam sendo tocados pelos boiadeiros”.
Ainda ao volante, ele revelou. “O ‘Bloco do Boi’, isto é, o bloco ‘Nem Sangue Nem Areia’, tinha tudo a ver com aquela realidade”. Sinézio Jorge é filho de Zucão, um dos quatro fundadores do grupo.
“O pessoal chamava de ‘Bloco do Boi’ por simular uma tourada. Tinham dois bois, um toureiro e os bois ficavam correndo atrás da criançada. Era divertidíssimo”,
diz Sinézio.
O bloco de samba “Nem Sangue Nem Areia” teve início em 1946, na Vila Industrial, com influência de um filme de toureiro da época da década de 1941, “Sangue e Areia” (Rouben Mamoulian). O bloco foi uma iniciativa de quatro amigos, Bochão (Osvaldo Butcher), Tulé (Antônio Rua), Mané (Manoel dos Santos ) e Zucão (Sinézio Jorge). O filme conta a história do galã Tyrone Power (Juan Gallardo), um toureiro. Na Vila Industrial, por causa da forte relação com os bois, o bloco ganhou fama depressa.
“Naquela época, os desfiles de Carnaval aconteciam no Centro da cidade e depois vinham aqui para a Vila Industrial”. Até hoje, é lembrado pelos moradores mais antigos do bairro. “O desfile, inicialmente, subia a Conceição e descia a Glicério. Depois, passou a ser uma descida desde o Largo do Pará até a Glicério. Inicialmente, aqui no bairro, o pessoal levava cadeiras para assistir aos desfiles”, recorda.
“No Carnaval, eu recordo que os moradores colocavam um pau em cima das cadeiras”, quem diz é Miriam Soave, 74. Ela é professora aposentada, morou por, pelo menos, 30 anos na Vila Industrial e se recorda com carinho dos tempos de Carnaval. “Todos ficavam nas ruas aguardando para ver o Carnaval. Foi muito tranquilo aqui para todos nós da Vila”.
O último bloco, da primeira fase, do “Nem Sangue Nem Areia” foi realizado em 1975. O bloco só voltaria 34 anos depois.
SEGUNDA FASE DO NEM SANGUE NEM AREIA
Paulo Reda chegou acompanhado na praça Castro Mendes. O jornalista, de óculos, bermuda e camiseta branca, foi receptivo. O assunto da conversa era samba, uma de suas grandes paixões.
“No próximo ano, o samba-enredo será sobre coretos”, revelou. Não por menos, na praça, há um coreto. Renomeado de “Aureluce Santos”, a campineira sambista morreu em 2020, aos 72 anos. “Esses são espaços de arte, espaços de política, espaços de movimentos sociais”, explica Reda.
A segunda nova fase do “Nem Sangue Nem Areia” voltou em 2009. Dessa vez, sob direção de Helder Bittencourt, Roberto Cardinalli, Eric Iamarino e, claro, o próprio Paulo Reda. Desde o retorno do bloco, 13 desfiles já foram organizados. “A minha história com a Vila Industrial tem tudo a ver com o samba. A minha inspiração foi com o músico Helder Bittencourt, nascido aqui na Vila Industrial”. Para o entusiasta, foi em uma conversa de bar com o músico que a ideia de retomar a histórica “Nem Sangue Nem Areia” surgiu.
Em 2013, Bitencourt, aos 57 anos, morreu. Em sua vida, o produtor lutou para preservar o samba como patrimônio da cidade. “O Helder tinha como lema ‘alegria é coisa séria’ e é desse jeito que levamos o projeto. É muito organizado, com muita participação dos moradores e da comunidade da Vila Industrial”.
Um ano após a despedida de Helder, o “Nem Sangue Nem Areia” realizou uma homenagem. Com o eterno lema “Alegria é Coisa Séria”, o sambista virou samba-enredo. “Foi um ano marcante”, pondera Reda. Além do tema, hoje o bloco tem um Boneco de Olinda que representa Bittencourt. “A grande satisfação foi ver a alegria das pessoas”.
Embora já tenham se passado 77 anos desde as origens, a essência do bloco continua sendo relevante aos novos organizadores. “A gente tenta sempre fazer uma coisa com o pé no passado, mas também no presente”, reforça Reda.
Seja como for, uma das primeiras expressões populares da Vila Industrial continua mais viva do que nunca. “Eu tenho plena convicção de que o que podemos fazer para manter esse espírito original do ‘Nem Sangue Nem Areia’ a gente faz”.
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