Ela é voluntária na igreja, na venda de pastel da feira, e é assídua da paróquia São José, da Rua 24 de Maio, da Vila Industrial, em Campinas. Além de devota à comunidade católica local, Marely Curado é também referência no ramo da costura no bairro. À frente do ateliê da mesma rua da paróquia, ela rememorou o momento em que assumiu o negócio familiar. “Foi depois da minha sogra ter sido furtada. Aí ela passou pra frente”, diz.
“Aqui no bairro não tem muita circulação de viatura. É péssimo. Aqui é bem abandonado”, afirma a costureira. O relato de Marely é confirmado por outros comerciantes que, cercados por incertezas, encontram um caminho árduo para prosperar.
A segurança parece um problema aos moradores e aos pequenos negócios da Vila Industrial. No outro lado do bairro, o relato se repete. “O Prefeito tem que tomar uma providência para nós, comerciantes, termos segurança. Aqui não passa uma polícia”, diz a comerciante Ecledeia Lobo Rebelo.
Além da segurança, aos arredores da igreja São José, uma reclamação, seguida por um mistério, ecoa. “Aqui não tem uma padaria próxima. Todo mundo que vai a um mercado tem que andar bastante. A gente não tem um açougue, uma farmácia…”, diz Marely.
complementa Ecledeia.
“Eu não sei por que tudo o que abre aqui na Vila fecha em seguida”,
Por outro lado, a Prefeitura de Campinas informou que a Guarda Municipal vai reforçar a ronda no bairro. “A GM também faz operações com frequência para coibir tráfico de drogas e receptação de materiais furtados. Estas ações são desencadeadas somente pela Guarda e também em conjunto com outras forças de segurança, como Polícia Militar e Polícia Civil”, informou a assessoria de comunicação.
Para os moradores da Vila, a insegurança é um dos motivos que impedem que os pequenos comércios se desenvolvam. De acordo com a Prefeitura, é importante que a população comunique os crimes, seja pelo telefone 153 da Guarda Municipal ou registrando um boletim de ocorrência na delegacia mais próxima.
AJUDA DA COMUNIDADE
Embora haja insegurança e, muitas vezes, falta de opções de comércio para os moradores locais, a dona do ateliê revela uma tática desenvolvida pela comunidade. “As pessoas aqui são unidas. A gente se protege, sabe?”, Marely explica. “Se há algo de estranho, avisamos uns aos outros”, complementa. Seja como for, na década de 50, Ediney Curado, esposo de Marely, afirma que a segurança parecia melhor. “A gente pagava para um morador e ele fazia ronda aqui no bairro”, relembra.
No início, em outro ponto da Vila, mas não tão distante da igreja, a mãe de Ediney, dona Dalva, iniciou os trabalhos no ateliê. Atualmente, Marely está à frente do negócio e é referência. Inclusive, até as festas de aniversário das amigas ela já fez no lugar.
A relação entre os moradores e a comunidade do bairro é forte. Ela tem memórias afetivas na época da pandemia. Naquele ano, muitos comércios tradicionais fecharam, mas, além de negócios encerrados, vidas foram perdidas, o que abalou a comunidade local.
Em 2020, na véspera do Dia de São Tomé, a comunidade se organizou para fazer a típica festa, mas um dia antes, no dia 18 de março, a Prefeitura de Campinas decretou isolamento e o evento foi cancelado. “Foi um momento muito triste. Perdemos muitos amigos, jovens e mais idosos”. “A pandemia uniu a gente, mas separou também. Muita gente se foi. Muita mesmo”, diz Marely.
“Uma coisa que me marcou foi que a gente tinha preparado tudo. Isso foi na pandemia, havia casos e casos da covid. No dia 18 de março, a gente tinha tudo preparado. Compramos carne e tudo. A festa começaria no dia 19, aí o prefeito fez o decreto. Foi uma tristeza. O bolo de São José estava pronto… Então, foi muito triste esse dia de São José. A carne foi congelada, sabe? Esse dia marcou. Não aconteceu a festa. Naquele dia, o Padre celebrou a missa para só quatro ou cinco pessoas.”
A VENDA DE TRÊS GERAÇÕES
Márcia Assami Toma, de 58 anos, é uma comerciante da esquina entre a 24 de maio e a Rua Francisco Egídio. A venda é repleta de caixas de frutas, hortaliças e ovos em caixa e já existe há, pelo menos, 60 anos. Um típico e pacato varejo que tem o costume de fechar sempre na hora do almoço.
A vendedora explica que não é do bairro, mas sempre esteve por lá. “Sempre estive aqui, desde os 12 ou 13 anos.” Nesse tempo todo, ela viu comércios fechando e outros abrindo. Mas para ela, o maior desafio é a competitividade que os comerciantes têm contra o Centro, que fica muito próximo. “A reclamação do bairro é a violência”, ela diz. “Já fui vítima de roubo duas vezes”.
Ela explica que o fator “histórico” da Vila Industrial não é muito valorizado. Ela e a irmã nasceram e cresceram naquele lugar e, ao longo dos anos, o estabelecimento sofreu mudanças na estrutura.
Embora o fluxo não seja alto e já tenha sido vítima de assaltos, ela abre o sorriso ao revelar o motivo de permanecer ali.
“É um prédio próprio e, no final, acabamos nos acostumamos. Nós temos clientes fiéis, acabamos ficando. Você cria laços, entende?”.
O BAR QUASE CENTENÁRIO
Ele fica na esquina da Rua Antonio Bento com a Rua Elías de Souza. Quem passa, fica impressionado. O velho prédio quase centenário conservava, até julho deste ano, alguma cor de seu antigo marrom. Hoje, o lugar foi reformado, mas ele mantém a essência: é um bar e há clientes, mesmo que pela manhã. Ao longo das quase dez décadas, o estabelecimento já passou por, pelo menos, cinco pessoas. Atualmente, o proprietário é o comerciante Marcelo Parpinelli Cerqueira, que herdou do pai.
“Esse bar existe há uns 80 anos ou mais”, diz Marcelo que, sentado em uma cadeira, faz as contas para se recordar há quanto tempo a família administrou o negócio. “Só com o meu pai, esse bar funcionou por 24 anos”.
Embora o negócio seja antigo e conserve características marcantes no bairro, há muitos desafios da gestão. Para Marcelo, por exemplo, a principal dificuldade é a inovação. “Gostaria de manter a característica antiga dele, mas trazer coisas novas também”, explica.
Além disso, por conta do visual diferente e atrativo, Marcelo revela que há muitos clientes novos que comparecem. “Olha, aqui tem tantas pessoas do próprio bairro, mas clientes novos também. O fluxo é bom. Por mais que seja um pessoal mais de idade, sabe?”. Mas ele explica que a própria modernização do bairro, como uma academia nova próxima, ajuda a aumentar o fluxo de pessoal.
Antigamente, antes de o pai de Marcelo adquirir o boteco da antiga proprietária, a dona Fita, houve algumas mudanças significativas na estrutura do lugar. “Aqui nos fundos havia um espaço para o pessoal das antigas jogar bocha”. Hoje, o campo do esporte não existe mais. No lugar, foram colocadas duas mesas de bilhar, algumas estantes com troféus e, ao fundo, uma cozinha foi instalada.
Marcelo andou pelo lugar e contou, com nostalgia, da vez que o pai – que morreu em 2020 – realizou campeonatos de sinuca.
“Ele juntava o pessoal e fazia competições nessas mesas. Foi uma espécie de encontro do pessoal das antigas. Foi bem legal”.
Com novas expectativas, ele contou que pretende voltar com as competições, além de modernizar ainda mais a cozinha que não teve a construção finalizada.
UMA FARMÁCIA QUE RESISTE
A “farmácia do Pedrinho” parece ser referência entre os moradores dos arredores da igreja de São José. “A minha mãe sempre que voltava do hospital, ela fazia questão de consultar com o pai do Pedrinho também, acredita?”, quem diz é a dona Luzia, 76. E, de fato, Pedrinho ainda conserva a credibilidade na Vila. É a farmácia mais antiga disponível para os moradores.
“Eu herdei do meu pai essa farmácia. Ele abriu em 1965, ele faleceu há 20 anos e eu, desde os 14 anos, trabalho aqui com ele”, afirma. Após 50 anos, Pedrinho contraria toda a lógica do principal desafio dos comerciantes que se arriscam em um novo empreendimento na Vila: manter o negócio.
Para o farmacêutico, a fidelidade é a chave do sucesso. “Esse é o único emprego que eu tive na vida. Eu nunca trabalhei em outro lugar. Sempre atrás de um balcão”, explica. Pedrinho, que se chama José Pedro Gebara Filho, conta que a farmácia ficava do outro lado da rua e já sofreu algumas mudanças no decorrer dos anos. “Em 1992, eu mudei para cá. Mas, ainda hoje, eu utilizo caderneta para marcar, como se fosse aquela época antiga. Isso não muda”, revela.
Em cima de uma estante, o farmacêutico mostrou a ficha: uma caixa com inúmeros papéis marcados com os nomes dos clientes mais antigos. “Isso aqui é tradição. Aqui tem freguês de 58 anos atrás!”. Ele puxou a ficha de um, analisou e guardou de volta. “Isso aqui vem de gerações. Tem filhos, netos e continuará assim”, diz satisfeito.
Para se adaptar aos novos desafios, que são a competitividade das grandes redes, Pedrinho precisou abrir o negócio para novos sócios. Rafael Hideki Stefanini aceitou o desafio e hoje assume o negócio ao lado de José. “Eu fico aqui praticamente o dia inteiro. Faz quase dez meses desde que fizemos o acordo”, diz o empreendedor.
Para Rafael, a principal complicação que impede o sucesso do negócio é a segurança. “Aqui, a gente encerra às 22h. As pessoas não gostam de sair à noite”, explica.
“Graças a Deus, a gente consegue atender bem à nossa clientela e eles estão bem servidos”.
Vozes da Nossa Gente
Essa matéria faz parte do Projeto “Vozes da Nossa Gente”, que tem como foco no jornalismo hiperlocal e busca uma maior conexão com a comunidade. O “Vozes da Nossa Gente” pretende inspirar com boas histórias, que são contadas de maneira humanizada pelos moradores de dez bairros da cidade.
A cada duas semanas, uma região será o foco das pautas desenvolvidas pela equipe de jornalismo do portal, que produzirá, para cada região visitada:
- Matérias especiais que serão publicadas no ACidade ON Campinas
- Conteúdos interativos, que serão postados nas redes sociais do portal
- Um mini documentário que será disponibilizado no canal do ACidade ON no YouTube.