BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Autor de uma representação usada pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) como peça-chave para tentar anular provas do caso das “rachadinhas”, um grupo de cinco auditores fiscais do Rio de Janeiro suspeitos de enriquecimento ilícito tem sofrido sucessivas derrotas judiciais na tentativa de fazer valer a tese de que tiveram seus dados acessados ilegalmente.
A partir de agosto do ano passado, advogados do filho do presidente usaram o caso para entrar em contato com órgãos federais, como a Presidência da República, o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), além de acionar a PGR (Procuradoria-Geral da República).
A hipótese relatada ao governo e à PGR é que dois orgãos da Receita no Rio –o Escritório de Corregedoria da 7ª Região Fiscal (Escor07) e o Escritório de Pesquisa e Investigação da 7ª Região Fiscal (Espei07)– podem ter acessado criminosamente os dados fiscais do senador e embasado, por caminhos extraoficiais, a produção do relatório do Coaf (órgão de inteligência financeira) que originou, em 2018, a investigação contra Flávio.
Alvo dos auditores investigados e da família Bolsonaro, o então chefe do Escor07, Christiano Paes Leme Botelho, acabou exonerado em dezembro.
Duas advogadas de Flávio, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, chegaram a se encontrar em agosto com Jair Bolsonaro, no gabinete da Presidência da República, para relatar a versão.
A reunião contou com as presenças do general Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI, e Alexandre Ramagem, diretor-geral da Abin.
Em documento entregue às autoridades federais e à PGR, a defesa de Flávio escreve que os escritórios de corregedoria e inteligência da Receita no Rio “vêm rotineiramente alimentando, informalmente, os demais órgãos de controle com dados sensíveis e sigilosos para, no momento oportuno, investigar os alvos escolhidos e devassados previamente”.
O texto diz causar espanto que as “irregularidades perpetradas pelo Escor07” não tenham sido alvos de reportagens ou de investigação das autoridades.
Em 2018, os cinco auditores investigados formalizaram as acusações contra Paes Leme Botelho e outros três colegas do Escor07 no Sindifisco, o sindicato nacional dos auditores fiscais, o que gerou um processo de desfiliação dos integrantes da corregedoria.
Durante as últimas semanas, a reportagem analisou dezenas de decisões judiciais e documentos internos de processos disciplinares da Receita, alguns deles sigilosos, entrevistou auditores e seus advogados, além de procurar os órgãos públicos envolvidos –e o cenário encontrado é diverso do que tentam fazer crer Flávio e seus advogados.
As investigações contra os auditores foram parar na Justiça e, por enquanto, as principais decisões têm sido favoráveis à corregedoria da Receita.
É o caso de Eduardo Afonso do Ramo, que teve a sua demissão do cargo público por ato de improbidade administrativa publicada em 11 de abril de 2019.
Tanto ele quanto a mulher tentaram anular a quebra de seus sigilos bancários autorizada pela Justiça, mas a medida foi mantida por decisões do TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) e do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Um dos argumentos de Afonso do Ramo, que também é usado por outros auditores, é o de que seus dados sigilosos foram acessados pelo Escor07 antes da chegada de denúncia anônima segundo a qual o auditor levava uma vida incompatível com seus rendimentos, com constantes viagens ao exterior e uso de caminhonete de luxo.
Segundo o auditor, isso foi um claro indicativo de que a denúncia foi fabricada pelos próprios corregedores.
“O simples fato de ter havido consultas a dados do demandante no sistema interno da Receita Federal não significa, por si só, que o servidor estava sofrendo perseguições, tampouco é suficiente para atribuir ao servidor que realizou a consulta a autoria da denúncia anônima que deflagrou a investigação”, decidiu o TRF-2.
O tribunal rejeitou apelação do casal em agosto de 2020.
Recurso especial contra esse acórdão também foi negado pelo ministro Herman Benjamin, do STJ, em dezembro de 2017. Afonso do Ramo tenta ainda anular a demissão por meio de um mandado de segurança no STJ.
A ministra Regina Helena Costa negou o seu pedido de liminar. O mérito ainda não foi julgado.
Seu advogado de defesa, Carlos Eugênio de Lossio e Seiblitz Filho, disse à reportagem que o processo disciplinar “é uma fraude urdida dentro do Escor07”. “Ele é vítima do mesmo grupo criminoso sobre o qual a defesa do senador Flávio Bolsonaro está agora jogando luz”, afirmou.
Outro dos auditores é Glauco Octaviano Guerra, que chegou a ser preso em 2020 na Operação Mercadores do Caos, suspeito de integrar esquema de desvio de verbas na aquisição de respiradores pelo governo do RJ durante a pandemia.
Guerra tem contra si a recomendação do Escor07 de demissão sob a acusação de construção de uma casa no valor de R$ 505 mil no Recreio dos Bandeirantes, bairro na zona oeste do Rio, com dinheiro de origem não comprovada.
O auditor entrou com ação para anular a investigação, mas setença de novembro assinada pelo juiz Eduardo Rocha Penteado, da 14ª Vara Federal do Distrito Federal, rejeitou o pedido.
Guerra afirma que a casa pertence aos sogros, mas em sua sentença o juiz lista depoimentos do vendedor e do contador contradizendo o auditor, além de relatar que débitos nas contas dos sogros no mesmo período somaram apenas R$ 65 mil.
O juiz diz ainda que Guerra afirmou na ação que os sogros é que deveriam ser penalizados. “Afasto tal alegação, considerando que se constatou que houve simulação no negócio de compra e venda, sendo o real proprietário do imóvel o autor [Guerra], que residiu no imóvel com sua esposa e filhos, permanecendo os sogros residindo em um apartamento localizado em prédio humilde, em Madureira.”
O advogado de defesa de Guerra, Claudio Serpa da Costa, afirmou que a investigação foi ilegal e que a casa é do sogro de seu cliente.
Outro auditor investigado é Antonio Sebastião Leonel Gomes Marsiglia Júnior, que tentou por meio de dois recursos anular a quebra do seu sigilo bancário pela 7ª Vara Federal do Rio. Ambos foram rejeitados pelo TRF-2.
Em uma das decisões, o juiz Marcelo Pereira da Silva escreveu que “em se tratando de servidor público que atua como auditor fiscal da Receita Federal”, afigura-se inadmissível a “recalcitrância” em prestar as informações necessárias ao esclarecimento de indícios de variação patrimonial incompatível.
Marsiglia Jr. disse à reportagem que não houve recalcitrância e que não abriu suas informações bancárias por não confiar na imparcialidade do Escor07, visto que afirma ter sido alvo de quatro investigações patrimoniais anteriores sem que saiba o desfecho que tiveram.
Ele afirma que a movimentação tida como suspeita se refere a operações em Bolsa de Valores, atividade sem qualquer relação com a função pública e que ele desempenha desde antes de ingressar na Receita.
Marsiglia entregou à reportagem cópias de comprovantes –que havia encaminhado aos investigadores– de ganhos, entre outros, de R$ 690 mil na compra e venda de um lote de ações da Gerdau, em 2005, e de R$ 1,26 milhão de dividendos pagos em dez anos por empresas negociadas na Bolsa.
Os outros dois auditores investigados são Luiz Cesar Noronha Nardin e Marcelo Liporace Donato.
O primeiro teve o sigilo bancário quebrado em junho de 2019 pela 3ª Vara Federal do Rio. Em relação ao segundo, a 20ª Vara Cível do DF julgou em agosto improcedente seu pedido para anular a investigação da Receita.
Na sentença, a juíza Liviane Kelly Soares Vasconcelos afirmou não ver provas de que a denúncia anônima que embasou a sustentação tenha decorrido de ação irregular dos agentes públicos, além de considerar irrelevante a sua origem.
Neste caso, um mês antes da chegada da denúncia anônima à Receita houve um email do chefe do Espei07 para o chefe do Escor07 tratando de investigação sobre o imóvel em nome do pai do auditor.
O advogado de Nardin –Seiblitz Filho, o mesmo de Afonso do Ramo– negou as acusações e destacou que a corregedoria usa nos pedidos de quebra de sigilo até hipotéticos gastos de cartão de crédito dos filhos dos suspeitos.
O advogado de Liporace Donato –Claudio Serpa da Costa, o mesmo de Marsiglia e de Guerra– afirmou que o caso tem como base denúncia anônima forjada pelo Escor07 e que irá provar isso.
A representação dos auditores ao Sindifisco chegou a ser encampada pela gestão anterior e analisada por um Conselho de Árbitros, que aprovou relatório recomendando a exclusão do chefe do Escor07, Paes Leme Botelho, e de outros integrantes da corregedoria dos quadros do sindicato sob o argumento de que eles cometeram irregularidades nas investigações.
Em ofício ao sindicato, Paes Leme Botelho disse que as acusações eram “injuriosas e frágeis”.
Sob nova gestão, o Conselho de Delegados Sindicais do Sindifisco decidiu, em janeiro de 2020, não analisar o mérito da questão por considerar que o sindicato não era a instância adequada.
A movimentação do Sindifisco levou a corregedoria-geral da Receita a acionar a CGU (Controladoria-Geral da União) contra o que considerou tentativa de intimidar os auditores do Escor07.
Houve abertura de um PAR (Processo Administrativo de Responsabilização), que se encontra em fase final e está sob sigilo.
O Sindifisco disse que “qualquer filiado pode representar outro filiado” e que os representados reagiram “a uma possibilidade teórica que jamais foi colocada em prática na história do sindicato, uma expulsão”.
Flávio foi denunciado no caso das “rachadinhas” sob acusação de liderar organização criminosa que recolhia parte dos salários de alguns de seu ex-assessores na Assembleia do Rio, em esquema operado por Fabrício Queiroz, amigo do presidente Jair Bolsonaro.
O GSI e a Abin confirmaram em manifestações ao Supremo Tribunal Federal, que investiga o envolvimento do governo na defesa de Flávio, o encontro com advogadas do senador, no gabinete presidencial.
Heleno e Ramagem dizem, porém, que não consideraram o caso assunto de segurança institucional e sim um tema de cunho interno da Receita.
A ofensiva de Flávio sobre estruturas do governo foi revelada pela revista Época, que também afirmou que a Abin produziu relatórios para orientar a defesa de Flávio. A agência nega ter feito esses relatórios.
Questionado se há investigação relacionada ao Escor07 ou Espei07, o Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) disse apenas que “o assunto compete à Auditoria Interna da Receita Federal”.
A Receita afirmou que por se tratar de assuntos internos não irá se manifestar.
A defesa de Flávio e o senador não responderam às perguntas enviadas pela reportagem.