9 de maio de 2024
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Educa mais cast

A pior forma de racismo é praticada na invisibilidade, alerta professora

Doutora em Educação, Maria Alice Zacharias venceu barreiras para continuar na escola enquanto trabalhava em canaviais. Hoje, luta para levar educação ao campo

Em processo contínuo de aprendizagem, a professora doutora Maria Alice Zacharias sabe que existem poucas verdades absolutas. Mas, com uma trajetória marcada pela vitória em inúmeras batalhas, ela adquiriu pelo menos duas convicções: a primeira, de que a Educação é o melhor caminho para a realização de sonhos; e a segunda, para fazer frente a um racismo muito vivo na sociedade, a melhor arma é ter propósito. 

“Você precisa estar o tempo todo com um equilíbrio emocional muito forte e ter um propósito de vida para não se deixar abalar e seguir em frente”, define.  

E não foram poucos os abalos que colocaram em xeque o propósito dessa professora de Educação Infantil na rede municipal de São Carlos e voluntária no MOVA Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, com o qual busca garantir que pessoas de núcleos rurais tenham acesso à educação.  

“Em vários momentos, ouvi piadas por ser diferente ou por ter uma oralidade rural, já que vim da roça. Também é muito complicado você estar em um ambiente e ser chamada de negra do cabelo duro, pau de fumo. É até difícil falar, porque as emoções vão tomando conta de mim”.

Crédito: Arquivo pessoal
Crédito: Arquivo pessoal.

 

Mas ela encontrou as palavras e contou um pouco da sua trajetória, que é tanto inspiração quanto ferramenta para que outros realizem seus sonhos, assim como o dela que, de uma infância ausente das salas de aula, hoje tem doutorado em Educação. Sua entrevista também inicia abordagens étnico-raciais, que serão tema do EducaMaisCast em dezembro.

O início da sua vida foi marcado pela necessidade de trabalhar e por longos períodos fora da escola. Como foi essa época? 

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Minha trajetória até aqui não foi nada fácil. Comecei a trabalhar com 8 para 9 anos, como babá, cuidando de um bebê na casa da sede de uma fazenda em que morei com minha família durante uns 10 anos. Foi quando também tive que parar de estudar. Depois de um certo tempo, tivemos que sair de lá e viemos morar na cidade, no Centro de São Carlos. Nesse período, eu lembro de falar: “Mãe, quero voltar a estudar”. Então, ela me matriculou em uma escola, onde eu era a educanda mais velha na sala e estava defasada em relação ao conhecimento dos outros estudantes. Afinal, só tinha feito o equivalente ao 1º, 2º ano do Ensino Fundamental. Isso fez com que eu fosse motivo de piada a mais velha que não sabia nada. Coisas assim. Só que nós ficamos pouco tempo lá. Acredito que foram só uns 90 dias morando na cidade. Depois, voltamos para a zona rural, onde meu pai foi trabalhar em uma usina.

Como foi voltar para o campo? Foi possível dar continuidade aos seus estudos? 

Eu levei um susto danado, porque, quando eu cheguei lá, a nossa casa era a única no meio do canavial. Íamos morar totalmente isolados para onde eu olhava, era cana, cana, cana… não tinha outra coisa além dos canaviais. Foi nessa época, também, que resolvi entrar para o corte de cana para ajudar no sustento da família. Mas, dentro de mim, o sonho de estudar estava latente. Eu não queria parar de estudar de jeito nenhum. Aí eu fiquei sabendo que, na usina, tinha uma escola. Então, me matriculei e fui dando continuidade aos estudos, trabalhando no corte e estudando ao mesmo tempo. Era muito cansativo, porque eu chegava a cortar de 12 a 15 toneladas de cana por dia. Era um esforço físico imenso e sofredor. Por muito tempo, eu tive essa vida de trabalhar durante o dia e estudar a noite. Dormia pouquíssimas horas e me levantava muito cedo.

Você sente que, naquela época, seus direitos básicos estavam sendo negados? 

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Sinto sim que meus direitos foram negados tanto para mim, quanto para os meus pais, tendo em vista que sou filha de pais analfabetos, que não puderam frequentar a escola na infância. Nesse sentido, foi necessário um esforço muito grande para permanecer na escola e enfrentar tantos desafios e preconceitos, ainda mais por ser uma mulher negra e uma mulher rural. 

Lembrança de Maria Alice Zacharias no início da sua jornada no magistério. Crédito: Arquivo pessoal
Lembrança de Maria Alice Zacharias no início da sua jornada no magistério. Crédito: Arquivo pessoal

Quais desafios foram esses? 

Os desafios foram tantos que, se eu for pontuar cada um, não terminaria nunca. O que eu digo é que acredito que um dos principais foi vencer a fadiga, o cansaço de ter que lidar com pessoas soberbas e preconceituosas, somados ao desgaste causado ora pelo trabalho, ora pela distância a pé para chegar à escola. Agora, falando sobre isso, me passou um filme na cabeça e, por um instante, eu me vi de novo naquela usina, no fim da tarde, em uma carreta carregada de pessoas. Eu falava que eram “ferramentas humanas”. E, de repente, a voz de um homem branco dizia assim:  “você não pode segurar aí, seu negro fedido”. Eu olhei para o lado e aquele branco estava se referindo ao meu irmão. Naquele dia, não ficou ninguém em cima da carreta; foi uma briga só. Toda aquela situação era triste demais. Isso me marcou bastante e profundamente.

Trabalhando na roça, você tinha consciência do racismo e de que era uma de suas vítimas? 

Eu não sabia o que era o racismo propriamente dito. Mas podia sentir a hostilidade das pessoas, principalmente quando eu era motivo de piada de alguém. Na maioria das vezes, pela minha própria característica fenotípica, que está presente em mim e na população negra. Tanto que outro fato que me recordo é que, certo dia, eu estava saindo do corte de cana mais cedo, porque eu sempre saia um pouco mais cedo, tipo uns 40 minutos antes, para dar tempo de ir à escola , caminhando pela estrada batida de terra vermelha, quando ouvi a voz de um italiano que disse: “Quem ela pensa que é? Estudar para que? Por acaso ela acha que vai ser doutora? Só se for dos canaviais”. E ria. Então, tudo isso me marcou muito, mas eu só pensava “eu não vou desistir. Não vou. Eu sou capaz. Eu vou conseguir sim. Não será essa voz que vai me calar e fazer eu desistir dos meus sonhos. Jamais”.

Qual foi seu grande incentivo para continuar estudando naquela época e até hoje? 

Na medida em que fui ganhando conhecimento, percebi que as mudanças ocorrem por meio da educação. E senti a necessidade de me aprimorar, cada vez mais, em relação aos estudos. Então, fui dedicando a minha vida à educação. Eu também queria que as pessoas se sentissem representadas e acreditassem que é possível chegarmos aonde quisermos por meio dos estudos.

Nesse sentido, você vem representando tanto as pessoas negras, quantos as do campo (grupos que, no Brasil, possuem uma intersecção muito grande). Como fazer isso por meio dos estudos? 

Inicialmente, eu comecei a me aprofundar na Educação Ambiental, porque ela está muito atrelada à pessoa que sou hoje. Eu sou uma pessoa do campo, que viveu em meio à natureza; gosto muito da fauna, da flora. E acredito que estamos conectados não somos os únicos seres do mundo. Então, ao ingressar na faculdade, eu fiz o curso de Ciências Biológicas. Ali, senti que meu conhecimento popular sobre plantas, por exemplo, embora sem embasamento científico, facilitou meu processo evolutivo dentro da academia. Posteriormente, fiz mestrado e doutorado na área da Educação Escolar, Teorias e Práticas Pedagógicas, sendo que, no mestrado, estudei a temática dos Orixás, porque eu queria conhecer um pouco mais da cultura e da história da África; queria conhecer um pouco mais dos meus antepassados e isso foi primordial na minha vida. Por fim, eu tentei articular esses conceitos com a educação de pessoas jovens e adultas, que é a área em que eu atuo ainda hoje.

Maria Alice com alunos e colegas durante exposição de projetos. Crédito: Arquivo pessoal.
Maria Alice com alunos e colegas durante exposição de projetos. Crédito: Arquivo pessoal.

  

Situações racistas também fizeram parte dessa jornada acadêmica? 

Enxergar o racismo exige de nós um olhar crítico e reflexivo. Então, pela própria forma como a sociedade foi constituída, às vezes é algo muito difícil da gente perceber de pronto. Porque é um racismo velado. Vou até citar um exemplo: quando fui trabalhar em determinado local, eles estavam querendo contratar alguém para ser atendente, recepcionista. Aí o empregador disse assim: “A nossa empresa precisa pensar em colocar aqui na frente, na recepção, uma pessoa como fulana de tal. Uma pessoa alta, clara, com cabelos compridos e olhos azuis”. É como se a empresa só fosse ter sucesso sendo representada por esse modelo padrão. Aquilo me doeu muito. Eu era a faxineira do local. Eu já estava estudando, já estava formada professora, mas era a faxineira. E quando digo que trabalhava de faxineira, friso que todas as pessoas que prestam serviços braçais são valorosas e possuidora de igual direto das demais. Mas são coisas assim que acontecem. E se a gente não tem um olhar crítico, reflexivo que, às vezes, só conseguimos com estudo acabamos sendo podados o tempo todo. A pior forma de racismo é quando ele é praticado na invisibilidade. Porque ele fere, agride e poda nossos sonhos. E lutar contra tudo isso exige de nós uma força imensa. Imensa mesmo. Mas, felizmente, sempre tive dentro de mim que nada poderia me fazer desistir, acontecesse o que acontecesse. Eu precisava continuar, para que eu pudesse representar os meus semelhantes. E eu continuo.

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