Wakanda não existe...
O mundo real é outro: Wakanda não existe. Seguimos continuamente com as lutas antirracistas por reconhecimento e valorização da cultura negra
Tanto sucesso, se explica, em parte pelos bastidores do projeto e do filme, chamando a atenção, de forma inédita na indústria cultural estadunidense, para o quadro de atores e atrizes majoritariamente composto por negros e negras. Para além do sucesso, um fato sobre o filme, chama-nos à atenção, principalmente nos dias atuais, que é a questão da reflexão sobre a importância da representatividade.
Boseman se tornou um ícone e sua presença inspirou milhares de crianças e adultos negros a seguirem seus passos na luta por um mundo melhor, haja vista seu inegável valor para a representatividade da cultura negra, em especial, em um dos campos mais hostis para a positivação do "ser negro", a saber, o cinema, que sempre produziu o contrário, o negro marginal.
Mas, o mundo real é outro: Wakanda não existe. Seguimos continuamente com as lutas antirracistas por reconhecimento e valorização da cultura negra, e recentemente impulsionado pelo lamentável episódio racista do assassinato ao vivo de George Floyd, cuja morte deflagrou um movimento mundial pelos Direitos Humanos e combate ao racismo com o uso da máxima "Black Lives Matter".
O filme nos faz refletir sobre novas formas de construir o "ser negro" e suas culturas, colocando como ponto de inflexão a possibilidade de se construir um mundo de consciência sem racismo. O filme nos propõe pensar um devir futuro, onde é possível transar a ancestralidade com a modernidade, vivenciar a tradição paripassu com o progresso, e de maneira palpável, viver num mundo sem racismo e possível para todos.
A representatividade do filme, referenciando a cultura negra e nos levando a imaginar um ambiente altamente tecnológico e rico, habitado por uma população saudável, inteligente e guerreira, com boa formação educacional e política e, sendo protagonista no desenvolvimento de novas formas de administrar o mundo e, mantê-lo em harmonia e paz. Representatividade, esta, escassa nos bastidores da vida real e comum, infelizmente, diferente do ambiente idílico do filme.
Na realidade não temos heróis nem habitamos num mundo altamente desenvolvido, o cenário, é outro, vivemos num verdadeiro abismo, onde a morte prevalece sobre a vida, e pior, a sociedade contemporânea naturalizou a morte, principalmente dos corpos negros.
Naturalizou, de tal modo que não nos espantamos mais com o assassinato de milhares de jovens pretos e periféricos, de mulheres, em sua maioria negras e do extermínio escancarado dos povos indígenas. E essa não deixa de ser a faceta mais nefasta da sociedade, por trás de toda esta tragédia, ainda vivenciamos o descaso e ausência de políticas públicas eficazes por parte do Estado, para salvaguardar estas vidas. Estado tomado de assalto por elites dominantes pouco sensíveis aos dramas e injustiças sofridos pela população negra, perpetuados pelo racismo e a discriminação, que nos escraviza duplamente nestes tempos, pela violência e pela miséria.
Pantera Negra e Chadwick Boseman, através da magia do cinema, por alguns minutos nos fizeram sonhar e embevecidos por este devaneio, encerro aqui com a frase de um outro herói, morto pela intolerância de uma geração, o Dr. Martin Luther King, que há 57 anos, nos disse: "À medida que caminhamos, devemos assumir o compromisso de marcharmos em frente. Não podemos retroceder." Luther King e Boseman, presentes!!!
OBS: O blog Multipli_Cidade é feito coletivamente e apresenta, semanalmente, textos inéditos de uma rede de pesquisadores vinculados ao Laboratório de Política e Governo da UNESP/Araraquara.